quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

DORES DE UM OUTRO PARTO, PARA O ORIENTE MÉDIO

Dores de um outro parto, para o Oriente Médio

Hasan Abu Nimah*, The Electronic Intifada, 31/12/2008,
http://electronicintifada.net/v2/article10082.shtml


Quando Israel invadiu o Líbano, Condoleezza Rice festejou a agressão como "as dores do parto de um novo Oriente Médio". Bem poderia repetir a expressão. Mas esse não será o parto do Oriente Médio que ela desejou e deseja.

Os selvagens ataques de Israel a Gaza vêm depois de meses e semanas de infindáveis ameaças, movimentos de espionagem e segredos. As ondas de choque alastram-se pelo mundo árabe, seja como efeito do silêncio dos governos árabes, seja pela covardia e cumplicidade internacional seja como efeito da própria barbárie em que Israel mergulha.

Israel sempre agiu do mesmo modo. Desde o primeiro dia, e mesmo antes de haver Israel, gangs sionistas lideradas por futuros primeiros-ministros introduziram o terrorismo no Oriente Médio. Israel e seus fundadores foram pioneiros na prática de assassinar funcionários da ONU e líderes palestinenses, e foram pioneiros nos ataques terroristas a hotéis, estações de trem e aos departamentos civis do governo palestinense.

Israel trouxe armas atômicas para o Oriente Médio. Israel introduziu na Região a primeira tecnologia avançada que ali se conheceu, de usurpação e ocupação, de construção de prédios em terras que não pertenciam a israelenses e tinham proprietários regulares e legais. Israel atacou e massacrou civis com armamento ultra-avançado, e sempre inventou justificativas novas, a cada novo crime. Essa, afinal, foi a principal contribuição dos israelenses ao Oriente Médio, durante 60 anos.

A carnificina que se vê hoje em Gaza, portanto, nada tem de novidade, embora, dessa vez, o horror alcance novos e vergonhosos recordes. O coração de todos e de cada um, homens e mulheres comuns nas capitais árabes, apertam-se de dor, e por todos os cantos ouvem-se protestos, sempre, primeiro, contra seus próprios governantes e contra a perversidade que se vê estampada em cada manchete, nas quais a "comunidade internacional" mecanicamente apoia o agressor e ajuda a castigar a vítima.

Verdade é que o que está acontecendo em Gaza já aconteceu outras vezes: os massacres do início de 2008, os do Líbano em 1982, 1996 e 2006, e haveria muitos outros exemplos. Em todos os casos, as reações foram idênticas. Quando Israel atacou o Líbano em 2006, também recebeu luz verde das potências ocidentais e das potências regionais. Então, como hoje, os EUA e a Inglaterra adiaram qualquer proposta de cessar-fogo, para que Israel tivesse tempo para prosseguir a carnificina e tentar atingir os objetivos que tivesse em vista. De difetente que, em 2006, Israel fracassou. Nada conseguiu. Foi derrotada, apesar do apoio político e militar massivo.

Em Gaza, Israel criou, mediante o bloqueio e o sítio, e depois de décadas de ocupação e opressão continuadas dos palestinenses que lá vivem, condições que fizeram, do ataque em curso uma profecia que se autocumpre. Assim Israel se auto-encurralou. O assassinato indiscriminado de centenas de civis em Gaza (300 mortos e 700 feridos, apenas nas primeiras 24 horas) gerou os sempre requentados surtos de "preocupação" da "comunidade international."

Israel ignorou a fraca 'conclamação' para pôr fim à violência, que veio do Conselho de Segurança da ONU, porque sabe que veio apenas como cortina de fumaça para dar cobertura política ao próprio Conselho de Segurança, não como primeiro passo de qualquer movimento efetivo para pôr fim à agressão.

Outra vez, como no Líbano, Israel é sempre rápida para iniciar guerras. Mas a questão importante sempre é como sair da guerras. O Hamás – e a empenhada resistência do povo da Palestina – não são exércitos regulares, dos que se derrotem logo à primeira declaração de vitória. Todos sabem que Israel tem poderio militar para destruir Gaza e matar todos os homens e mulheres que lá vivem. Contudo, por mais atrocidades que cometa, o exército israelense sempre sairá de cena sem vitória efetiva a comemorar. Essa é a história dos últimos 60 anos.

Em 2008-9, Israel colherá mais uma derrota em Gaza, para somar à sua macabra colheita de horrores e mortes.

Com mais esse morticínio, Israel garantiu que jamais será aceita como Estado regular, permanente, nessa Região. Esse tipo de integração não se faz por declarações espetaculosas de televisão. Para integrar-se e sobreviver, Israel depende de ser aceita pelos povos que aqui vivem. E sobre o que pensam sobre Israel os povos que aqui vivem, basta apurar o ouvido e ouvir as ruas em todo o Oriente Médio. Esse é o resultado de Israel ter sempre confiado nos "aliados" (que em muitos casos Israel mais domina do que é dominada por eles) que jamais se ocuparam o suficiente com o futuro de Israel a ponto de, para salvar Israel, se não pelo bem das vítimas de Israel, recomendarem moderação a Israel.

É responsabilidade de Israel ter levado os eventos para além do ponto em que qualquer conciliação ainda seria possível, a um ponto em que Israel já destruiu qualquer perspectiva de paz.

Israel embaraçou, humilhou e enfraqueceu os Estados árabes que propuseram e assinaram tratados de paz na esperança de que os tratados propostos ou assinados gerassem algum ímpeto de paz também nos comandos militares de Israel, principalmente em relação aos palestinenses cujas terras Israel ocupou e ocupa. Israel fez gorar cada abertura e cada iniciativa que os árabes propuseram; para Israel, cada iniciativa de paz vinda do mundo árabe sempre foi vista como mais um ponto a ser explorado, como mais uma fraqueza de um inimigo, do que como oportunidade de crescer e avançar na direção da paz indispensável a todos, na Região. Ao mesmo tempo em que muito clama que só deseja paz e segurança, Israel há muito tempo age como mais um rogue state[1]: desrespeita a legislação internacional, divulga práticas racistas e manifesta completa indiferença pela defesa da vida humana.

Esse processo ainda não está concluído. Israel continuará a andar na direção do abismo, até que as magras "conquistas" em direção à paz – os próprios tratados de paz – virem letra morta. Esse, afinal, parece ser o único desejo dos corpos militares de Israel, por mais que ainda falem de paz.

Ninguém pode prever com segurança de que lado Israel agredirá, nem quem será a próxima vítima – porque as vítimas de Israel sempre são em muito maior número do que as que se vêem. Mas se podem prever alguns resultados muito prováveis.

O massacre de Gaza não destruirá o Hamás, e ainda que Israel execute até o último todos os que apoiam o Hamás, nem assim porá fim à resistência. Ao contrário, a resistência aumentará em toda a Região, fazendo ruir a noção de que a resistência é movimento superado, inviável ou impossível e que a única "escolha estratégica" que restaria aos árabes seria a negociação... depois de muito enfraquecidos.

O massacre de Gaza enfraquecerá e desacreditará ainda mais os chamados "moderados" que trabalham incansavelmente contra qualquer tipo de resistência armada e que apostaram tudo nos fracassados processos de paz, e seus apoiadores e patrocinadores.

Pode acontecer também de vermos o enfraquecimento do papel moderador da opinião pública no mundo árabe, que tem sido extremamente paciente com as negociações estéreis e cenograficamente lideradas por seus representantes políticos. Já é quase impossível fazer reverter a crença já firmemente enraizada na opinião pública de que houve cumplicidade de governos árabes na chacina de Gaza.

Ninguém esquecerá que a ministra dos Negócios Estrangeiros de Israel, Tzipi Livni, lançou suas mais pesadas ameaças contra Gaza quando estava no Cairo, dia 25/12. Ao lado dela, o ministro egípcio homólogo sorria. E não protestou. É mais difícil a cada minuto, para o Egito, justificar seu papel ativo no fechamento do cerco de Gaza, quando ordenou o fechamento da passagem de Rafah.

Fato é que a violência de tentar matar de fome, depois a tiros, a população de Gaza não poderia durar tanto tempo sem a cumplicidade de alguns governos árabes. Essa cumplicidade é marca de escândalo e vergonha, na história do árabes.

Por fim, Israel talvez aprenda a lição que já deveria ter aprendido na invasão do Líbano, em 1982: nenhuma força militar jamais garantiu qualquer segurança estável. Até agora, o exército israelense só tem tornado Israel e os israelenses cada vez menos seguros e cada vez mais odiados.

Israel isola-se cada dia mais, e assim torna cada dia mais coesos os seus inimigos; ao mesmo tempo, põe seus aliados e "amigos" em situação cada dia mais precária.

Vivemos, sem dúvida alguma, os últimos dias de uma era que começou com a conferência de paz de Madrid, há 17 anos. O "processo de paz" inaugurado naquela conferência, baseado na legislação internacional e que visava a institucionalizar o lugar de Israel no mundo árabe, falhou completamente e não há o que o faça renascer. E não se pode admitir que a violência continue a imperar.

Uma das vias que ainda resta é fazer valer a lei internacional. Nesse caso, Israel perde poder bélico – que não pode continuar a ter, como até agora, desmedido e sem qualquer controle civilizado. E o mundo civilizado impor-se-á, afinal, a Israel.

Para tanto, espera-se coragem de uma "comunidade internacional" que, até agora, só exibiu covardia e não fez mais do que fugir ao cumprimento de seus deveres morais. Governos e organismos internacionais podem optar por continuar a fugir e tentar escapar de cumprir o único papel que justifica que existam. Saibam, pelo menos, que não são imunes às ondas de choque que emanam de Gaza.

* Hasan Abu Nimah é ex-embaixador da Jordânia na ONU. Ensaio publicado no The Jordan Times. Reprodução autorizada pelo autor.

[1] Sobre "rogue states", ver http://en.wikipedia.org/wiki/Rogue_state (NT)

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