quarta-feira, 8 de abril de 2009

O mal que o Big Brother faz

O RESCALDO DE UM EPISÓDIO DE GROSSEIRAS MANIPULAÇÕES JORNALÍSTICAS

*Celso Lungaretti


No Observatório da Imprensa, um leitor, dizendo-se funcionário público de Brasília, questionou o que lhe pareceu contraditório: minha afirmação de que nada havia de errado na escolha de Delfim Netto como alvo de sequestro em 1969 e a crítica que fiz à Folha de S. Paulo por trombetear tal episódio.

A resposta que redigi para o OI me permitiu abordar um outro ângulo da questão: o imenso desconhecimento do que foi a ditadura brasileira e a dificuldade para transmitir tais informações ao grande público, já que a indústria cultural não colabora (muito pelo contrário!).

Então, só um público mais seletivo tem uma idéia aproximada da realidade do período. A maioria dos cidadãos fica à mercê da propaganda enganosa da extrema-direita.

Daí eu ter advertido desde o primeiro momento: ruim mesmo seria a utilização panfletária da reportagem da Folha por parte dos sites e correntes de e-mails fascistas.

Quanto aos próprios leitores do matutino, boa parte deles é capaz de perceber as manipulações grosseiras da repórter e chegar a uma conclusão diametralmente oposta àquela que a Folha tentou plantar em sua cabeça.

Quando se fala que os resistentes assaltavam bancos e sequestravam diplomatas, o cidadão comum forma um juízo a partir das circunstâncias atuais. Ele não sabe que isto se passou sob um regime totalitário, nem a indústria cultural cumpre seu dever de inteirá-lo disto (pelo contrário, deturpa a verdade histórica, vendendo gato por lebre, ou seja, ditadura como ditabranda...).

Também ignora o que seja um movimento de resistência à tirania, como o que protagonizamos no Brasil e os que existiram em países submetidos ao nazi-fascismo.

ALIENAÇÃO E INFANTILIZAÇÃO - Já não existem tantas pessoas vivas que eram adultas nos anos de chumbo; e, menos ainda, que tivessem conhecimento do que acontecia mas não era noticiado por força da censura e das intimidações de todo tipo que a imprensa sofria (desde a prisão de jornalistas até os atentados que os terroristas do CCC cometiam, com a conivência do regime).

Além disto, há a tendência que os idosos têm de colorir as lembranças do passado, apenas porque eram ativos e vigorosos então; e, com avaliações distorcidas pelo saudosismo, eles informam muito mal as novas gerações.

Finalmente, não devemos esquecer que o cidadão comum brasileiro tem muita tolerância ao totalitarismo - tanto que consentiu em viver sob ditadura por mais de um terço do século passado. Há brasileiros que verdadeiramente apreciavam ser reduzidos à infantilização por um regime de força, assim como é frequente encontrarmos velhos italianos elogiando os tempos em que viviam debaixo das botas de Mussolini e "os trens chegavam sempre no horário"...

Devido a todos esses fatores, a pregação demagógica, simplista e falaciosa da extrema-direita é mais facilmente aceita pelos leigos do que a verdade dos historiadores e das pessoas familiarizadas com a jurisprudência internacional e os valores civilizados.

Então, o desserviço prestado pela Folha, magnificando um episódio sem nenhuma relevância jornalística, foi colar na imagem de Dilma Rousseff vários adjetivos que causam imenso mal se não forem compreendidos dentro do contexto dos anos de chumbo.

Quem sabe o que realmente acontecia, tende a concluir que Delfim Netto merecia mesmo ser sequestrado e trocado pelas vítimas de sua canetada infame ao assinar o AI-5, autorizando e coonestando todas as atrocidades cometidas pela repressão ditatorial.

Mas, para quem não tem o quadro real na cabeça, parecerá que Dilma era uma contraventora. E foi exatamente esta a intenção do jornal, imputando-lhe responsabilidade num projeto que, ao que tudo indica, estava sendo desenvolvido apenas pelo Antonio Roberto Espinosa e só seria submetido ao comando Nacional da VAR-Palmares mais tarde; e que, além disto, não saiu da prancheta.

Enfim, a matéria da Folha não passou de uma forçação de barra, para reforçar os preconceitos dos desinformados e influir na sucessão presidencial.

MÁ FÉ x INGENUIDADE - Por último, Antonio Roberto Espinosa nos deve a informação mais relevante de todas: o que foi, exatamente, que a repórter da Folha lhe disse, ao procurá-lo para a entrevista? Como o convenceu a falar três horas ao telefone e a dar informações complementares em telefonemas e e-mails, além de autorizá-la por escrito a acessar os arquivos do Superior Tribunal Militar a ele referentes?

Nos seus desmentidos indignados, Espinosa repisa o que já ficou evidenciado para qualquer leitor minimamente perspicaz: ajudou a repórter da Folha a reconstituir esse insignificante episódio histórico (um não-fato, como fui o primeiro a constatar), sem perceber que poderia ser super-dimensionado e deturpado para servir como arma contra Dilma Rousseff.

"Esclareço que concedi a entrevista porque defendo a transparência e a clareza histórica", diz Espinosa. Deveria esclarecer, também, qual foi a pauta que a repórter lhe disse estar desenvolvendo. Há duas hipóteses:

1. Ela já conhecia o plano de sequestro e procurou Espinosa para tratar exatamente deste assunto (tudo leva a crer que não);

2. Ela procurou Espinosa a pretexto de falar sobre sua militância e, no meio da conversa, ficou sabendo do sequestro e interessou-se pelo mesmo (a mais plausível, tanto que ele afirma ter-lhe dado autorização para investigar no STM os fatos relativos à sua participação na luta armada, "não da ministra Dilma Rousseff").

Em termos de ética jornalística, será muito grave se ficar confirmada a avaliação a que cheguei, a partir das manifestações de ambas as partes: a de que a repórter procurou Espinosa alegando que queria escrever sobre ele, mas estava, isto sim, interessada no que poderia vir à tona sobre Dilma Rousseff.

Como não admito e repudio veementemente que sejam utilizados na minha profissão artifícios típicos de interrogatórios policiais, gostaria muito que Espinosa esclarecesse este detalhe.

* Jornalista, escritor e ex-preso político.

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