domingo, 19 de julho de 2009

O mistério da ponta dos Naufragados

FOLHA DE SÃO PAULO - 19/07/09

UM MISTÉRIO da arqueologia colonial brasileira será desvendado logo que a Marinha assinar o contrato que permitirá aos mergulhadores do Projeto Resgate Barra Sul o manuseio de destroços que estão a 12 metros de profundidade nas águas da ponta dos Naufragados, em Florianópolis. Lá, no leito do mar, está uma massa com 30 metros de extensão e 8 metros de altura, coberta por séculos de craca. Sob a crosta dorme uma embarcação, provavelmente espanhola e do século 16.
Segundo o historiador catarinense João Carlos Mosimann, é possível que se tenha descoberto o túmulo da nau Santa Maria de la Concepción, capitânia da expedição do navegador veneziano Sebastião Caboto, que explorou o rio da Prata. Ela afundou em 1526 e o local do achado confere com uma narrativa da época. Também é possível, com menor probabilidade, que a carcaça seja de uma caravela da frota de Juan Dias de Solís que naufragou dez anos antes, na mesma região. (Solís esteve na embocadura do Prata, mas foi comido pelos índios.)
Os dois naufrágios, bem como a história das duas expedições, cruzam-se numa fantástica aventura. Em 1516, quando a caravela de Solís afundou, havia no Brasil algo como 30 europeus. Onze marujos sobreviveram ao naufrágio, juntaram-se aos índios carijós e alguns deles foram felizes para sempre. Um, o negro (ou mulato) Francisco Pacheco, provavelmente foi o primeiro afrodescentente a formar família em Pindorama. Ele subiu os Andes com uma tropa de índios e chegou a uma terra de reis cobertos de metais e pedras preciosas. Eram os incas. A expedição foi massacrada, mas Pacheco sobreviveu e regressou com amostras de prata. Mais tarde ele retornaria à Espanha com a mulher índia, filhos e alguns carijós. (Outro náufrago, o grumete português Henrique Montes, regressou com duas mulheres e instalou uma em Lisboa e a outra em Sevilha.)
Ao ver a prata de Pacheco, o navegador veneziano mudou seu plano de circum-navegar a Terra e subiu o rio Paraná à procura das riquezas. Deu-se mal e acabou desterrado. Foram os náufragos de Santa Catarina, com a notícia do ouro e da prata das montanhas, que provocaram a expedição de Martim Afonso de Souza, na qual veio o Henrique das duas mulheres.
Essas aventuras estão contadas por Mosimann no seu livro "Porto dos Patos - A fantástica e Verdadeira História da Ilha de Santa Catarina na Era dos Descobrimentos", e por Amílcar D'Avila Mello no seu monumental "Expedições - Santa Catarina na Era dos Descobrimentos Geográficos".
A carcaça das cercanias da praia dos Naufragados foi achada pelo mergulhador Gabriel Correa, de 37 anos. Em 2005, ele viu uma âncora, que já foi identificada como peça espanhola do século 16. Meses depois achou-se a massa da embarcação, a 23 metros de distância. Em janeiro passado, os mergulhadores localizaram um canhão de três metros na parte superior do barco e, alguns mergulhos depois, viram seis balas de um canhonete de sinalização, esferas de ferro do tamanho de bolas de pingue-pongue.
Com uma ajuda de R$ 400 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa Científica e Tecnológica de Santa Catarina, Correa e uma equipe de seis mergulhadores trabalham com um sonar, detectores de metais e câmeras subaquáticas. Eles descem ao túmulo regularmente e nunca tiraram uma só peça do lugar. Correa acredita que o mistério será desfeito quando encontrarem o sino do navio ou examinarem o canhão em terra firme, limpo. Num dos dois deve estar inscrito o nome do barco.
Se debaixo da craca estiver a caravela de De Solís, ela será a mais antiga ruína de embarcação naufragada nos mares das Américas.

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