sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A discussão sobre a anistia

A discussão sobre a anistia

Por Marcos Aarao Reis

Este artigo foi escrito por meu irmão, Daniel, e publicado em O Globo de ontem. Por concordar com cada palavra, proponho a transcrição e a leitura.

Anistia, uma revisão necessária

Em agosto de 1979, foi aprovada uma Lei de Anistia baseada na conciliação das vontades e dos interesses, um pacto de sociedade. Nas margens ficaram os partidários de uma anistia ampla, geral e irrestrita, que previa o desmantelamento dos órgãos de repressão. Triunfaram então os conciliadores de todos os bordos, propuseram tudo esquecer, os desmandos da ditadura, vitoriosa, e os projetos revolucionários de luta armada, derrotados.

Um pacto de sociedade, como um tratado, ou uma constituição, duram o quanto duram as vontades e os interesses das sociedades que os aprovaram.

A lei da Anistia de 1979 já não é uma virgem há muito tempo. Foi revista em 1985, em 1988 e novamente em 2002. Trata-se de saber se uma nova revisão poderá ser construtiva e positiva. Estou convencido que sim, por quatro razões.

Em primeiro lugar, por suscitar uma discussão ainda insuficiente sobre a ditadura civil-militar, um regime que governou o país durante longos 15 anos, entre 1964 e 1979. Depois que se restaurou a democracia, a partir do começo dos anos 1980, o debate tem brotado, mas de curta duração e pouco intenso.

Considerando-se a importância histórica da ditadura, não é razoável que predomine a respeito o silêncio e a ignorância. Não é bom para a razão, para a alma ou para o coração.

Em segundo lugar, por trazer à tona uma discussão crucial: a tortura como política de Estado. Inquietante: o Brasil, em menos de 50 anos, teve dois governos que adotaram a tortura como política de Estado por longos períodos. O Estado Novo, entre 1937 e 1945. Depois, a ditadura, que se instaurou em 1964 e durou até 1979. Ou seja, em pouco mais de 40 anos, a sociedade brasileira teve, por 23 anos, governos que adotaram a tortura como política de Estado.

Insisto: a tortura foi aplicada como política de Estado. Não se realizou nos porões, esta é uma metáfora imprópria. Realizou-se nas salas de visita ou nas salas de jantar. Ninguém pode ousar dizer que a ignorava. Além disso, como já diziam os romanos, a ignorância não é argumento. Praticaram-se neste país a tortura e o assassinato seletivo. Não foi um excesso de boçais, embora fossem boçais os torturadores. Mas a ordem vinha de cima, havia uma cadeia de comando, desde o presidente da República, passando pelos ministros civis e militares, alcançando os comandos de tropas, envolvendo as instituições. Todos sabiam. E mandavam fazer. Alguns podiam sentir ânsias de vômitos. É irrelevante, o fato é que participavam. Responsáveis. Não é preciso que a sociedade conheça isto?

Em terceiro lugar, porque o debate possa ensejar o julgamento dos torturadores. A idéia de que, numa eventual revisão da lei da Anistia, seria necessário julgar os dois lados só pode ser fruto da desinformação ou do cinismo. Porque os militantes de esquerda já foram julgados. Frequentemente sem direito de defesa. Passaram por sofrimentos inomináveis, batidos e torturados. Muitos, os mortos e os desaparecidos nem chegaram a ser julgados. Foram condenados à morte antes do julgamento. Os que sobreviveram foram anistiados. Já os torturadores, nem o nome deles se sabe, salvo em listas informais de denúncias. A sociedade precisa conhecê-los. Os tribunais, julgá-los, dando a eles o direito de defesa que não foi concedido aos militantes de esquerda. Não se trata de revanchismo, pois ninguém deseja condená-los sem julgamento, ou sem ouvir sua defesa. Apenas julgá-los, porque cometeram crimes contra a humanidade, imprescritíveis, segundo tratados que este país assinou. Depois de julgados e eventualmente condenados, caberá à sociedade anistiá-los ou não, conforme decidirem os representantes eleitos.

Finalmente, em quarto lugar, a revisão da anistia poderá ensejar também a publicação dos documentos até hoje escondidos pelas Forças Armadas e pelos seus serviços secretos. Recusá-lo não é apenas dar mostras de estreito corporativismo. É muito pior: fazendo-o, como fazem atualmente o ministro da Defesa e os ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, é dificultar uma discussão que precisa ser feita, é manter uma cumplicidade que pereniza a desonra das Forças Armadas, desonradas já pela prática da tortura nos anos 1960 e 1970. Não seria a hora de dar um basta nisto? De assumir responsabilidades institucionais? Não seria esta a única maneira de construir um futuro melhor para este país?

Nossos vizinhos da América do Sul têm oferecido exemplos construtivos. As revisões se sucedem. Ditadores e torturadores têm sido julgados. Alguns, encarcerados. Os regimes democráticos não sofreram por isso. E não consta que Argentina, Chile e Uruguai tenham regimes democráticos mais sólidos que o do Brasil.

É certo que a democracia brasileira não está definitivamente consolidada. Democracia é um regime por natureza instável, sempre em construção ou em desconstrução. Mas nada a torna mais instável e fraca do que o medo de encarar o próprio passado. Sobretudo quando este medo se mistura ao ocultamento e à cumplicidade com a tortura, um crime contra a humanidade que tempo algum prescreve. Não o digo pelos que morreram, já estão mortos. Nem pelos que sofreram. Carregarão, sem remédio, na carne e na alma, o fardo dos sofrimentos. Mas pelos que virão, para que não sofram o mesmo sofrimento, e não se humilhe a sociedade novamente, porque a tortura humilha o torturado, mas humilha sobretudo a sociedade que silencia a respeito.

Daniel Aarão Reis
Professor de História Contemporânea da UFF

Fonte: http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2010/01/15/a-discussao-sobre-a-anistia/

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