terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Avatar, África e Copa

Assisti a uma sessão de “Avatar” incentivada por amigos que se disseram impressionados com o que seria uma inovação em roteiros hollywoodianos: a possibilidade de o filme fazer o espectador sair do cinema com raiva das personagens humanas. Curiosa por vários motivos, inclusive para saber o que motivava esse sentimento, fui a uma sala de projeção. Saí dela convicta de que, uma vez que a questão levantada originava-se no uso do poder de convencimento e na capacidade de destruição, há pelo menos um século já temos motivos para ficar com o pé atrás em relação à humanidade. Da vida real, não da ficção.

O que os humanos de “Avatar” levam adiante não é muito diferente do que fizeram portugueses, franceses e ingleses, entre outros, cada um à sua maneira, em empreitadas colonizatórias mundo afora, especialmente na África dos séculos XIX e XX. Os cientistas imaginados pelo diretor James Cameron têm funções análogas àquelas exercidas pelos primeiros antropólogos, bem como por administradores coloniais, militares, jornalistas, educadores e missionários de então: produzir conhecimento que habilitasse o posterior avanço político e geográfico sobre os territórios, a legitimação do poder e a conquista de mercados e matérias-primas para as indústrias europeias.

Se os humanos de “Avatar” precisam do mineral unobtanium, os europeus queriam outros. O ouro e o petróleo de Angola ou os diamantes da África do Sul e de Serra Leoa, por exemplo. Enviavam os profissionais de então para que produzissem etnografias ou mapeassem relevos. A tarefa de convencimento dos povos que se seguiu a esses estudos teve sucesso, em grande parte, pela habilidade dos governos metropolitanos de, por diferentes métodos, desarticularem, rearticularem ou negociarem identidades nas suas colônias, muito a partir dessas informações, tal qual faz o azulado avatar do fuzileiro naval Jake Sully, impulsionado por comandos mentais enviados à distância. Como o próprio protagonista metaforicamente reconhece e lamenta, em dado momento do filme, “à custa de quê, de algumas calças jeans?”

Para citar um exemplo, entre os anos de 1926 e 1951, o Estado Novo português de Salazar promoveu, pela via de sua Agência Geral das Colônias, um concurso de literatura que visava explicitamente à premiação de obras que fizessem propaganda do regime. Nas diferentes categorias, cabiam não só romances, novelas e contos como relatos de viagens, biografias, etnografias e monografias coloniais. Aos vencedores eram, anualmente, oferecidas gordas premiações em dinheiro. O mesmo deboche usado por Parker Selfridge (Giovanni Ribisi) para comentar os poderes da árvore sagrada de Pandora aparece em muitos desses livros, quando os autores relatam, por exemplo, rituais religiosos dos nativos.

Felizmente, no caso de Jake Sully como nos de alguns estudiosos dos países africanos, houve algumas mudanças de posição. As atitudes tomadas pelo povo Na’vi a partir de seu orgulho ferido, igualmente, não diferem tanto assim daquelas que constituíram os movimentos de libertação das colônias africanas nas décadas de 1950 e 1960 (e também de 1970, no tardio caso português). A diferença é que no caso de Pandora, só podemos imaginar como se dará a reorganização dos mitos, simbologias e território arrasados. Ou esperar a continuação de “Avatar”. Os países africanos convivem dia a dia com essas questões à frente dos olhos, e elas são mais reais que as de um filme em 3-D: a urgente inserção numa economia globalizada e, no caso específico da África do Sul, a realização de uma Copa do Mundo, são algumas delas.


FLÁVIA ARRUDA RODRIGUES é jornalista, mestranda em Letras/Estudos de Literatura Portuguesa da PUC-Rio e bolsista do CNPq. E-mail: flaviaarodrigues@yahoo.com.br.

Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/

Um comentário:

turquinho disse...

Eu gostei do filme e dessa análise, pena que no final, o diretor poderia ter colocado o "salvador da pátria" como um personagem que fosse do próprio local e não de fora, numa simbologia clara aos "marines libertadores dos povos oprimidos".Fica essa ressalva ao filme e ao diretor pela falta de coragem...