sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Por que a ira do Irã

por Antonio Luiz M. C. Costa

O regime de Khamenei e Ahmadinejad é autoritário, mas não primitivo, nazista ou louco

Muito de negativo do que se fala do regime iraniano é verdadeiro. O Irã é o segundo país do mundo em execuções (depois da China) e um dos muito poucos a aplicar a pena de morte a menores de idade e comportamentos como homossexualidade e adultério. A democracia é limitada, pois a cúpula clerical veta à vontade candidatos e projetos que lhe desagradem e não há fiscalização confiável do processo eleitoral. Protestos contra o sistema podem ser reprimidos e punidos com prisão, às vezes morte.

É notória a segregação dos sexos e a imposição às mulheres do lenço de cabeça e do mantô (casaco de mangas compridas e cor discreta), como alternativa ao xador, o manto negro das conservadoras, inclusive a esposa do presidente. As mulheres não podem estudar Direito (baseado na sharia, tradicionalmente reservada aos homens) e são discriminadas em vários aspectos legais, principalmente no que se refere a casamento e divórcio.

Mas não são poucas as mídias que exageram a ponto de criar a imagem de uma primitiva ditadura de fanáticos miseráveis que ameaçam países vizinhos, prendem as mulheres em casa e as obrigam a usar burcas, caricatura tão absurda quanto à do Brasil como uma selva povoada de macacos e canibais. No Irã, não há burca (típica do Afeganistão) e quase não se vê o niqab (véu que cobre o rosto), obrigatório na Arábia Saudita e, na prática, também nos Emirados do Golfo, no Iêmen e em regiões do Paquistão.

Apesar das restrições legais, a participação das mulheres na economia é superior à da maioria dos países muçulmanos e alguns ocidentais: 40% das mulheres maiores de 15 anos trabalham, mais que no Chile (36,9%), para não falar de Turquia (28%), Egito (20%) ou Arábia Saudita (18,9%). Dos estudantes no ensino superior, 51% são mulheres, porcentagem equivalente à da Holanda e mais alta que a do México (50%), Chile (48%) e a maioria dos países muçulmanos, inclusive a Turquia (42%).

Na Arábia Saudita, como também nos Emirados do Golfo, as mulheres sofrem restrições mais severas em todos os aspectos e as execuções, proporcionalmente à população, são igualmente comuns e brutais. Por limitada que seja a vida política no Irã às facções que aceitam o sistema teocrático, a maioria dos demais países do Oriente Médio (assim como o Irã antes da revolução xiita) é de monarquias absolutas e ditaduras que nunca viram nada parecido com seus acirrados debates políticos e disputas eleitorais. A acusação de fraude eleitoral pela oposição e pela mídia ocidental, embora não possa ser descartada, empalideceu ante a fraude massiva e documentada no vizinho Afeganistão na reeleição por fim referendada pelos EUA e pela Otan.

O Irã é também um país mais moderno e industrializado do que geralmente se imagina no Ocidente. A renda per capita é superior à do Brasil, da África do Sul e de alguns dos “novos tigres” (como Tailândia), e o produto interno bruto, maior que o de alguns países do G-20, inclusive Arábia Saudita e Austrália. Em termos de crescimento econômico, tem um desempenho decente para um país periférico, mesmo se não excepcional: uma média anual de 4,7% nos anos 90 e de 5,3% no período 2000-2007, superior à média da América Latina (foram 2,0% e 3,1%, respectivamente, no Brasil) e do Oriente Médio.

Em fevereiro de 2009, seu programa espacial pôs em órbita um satélite de fabricação própria. Em 2008, suas montadoras produziram 1,05 milhão de veículos, mais que a Itália, incluindo vários modelos nativos. Segundo o site Internetworldstats, 34,9% dos iranianos usavam internet em 2008 (no Brasil, 34%) e neste ano a proporção chegou a 48,5%. A Grande Teerã é uma moderna metrópole de 13 milhões de habitantes, com uma rede de metrô e transporte público superior à de qualquer capital brasileira.

É preciso ter em mente que os aiatolás, caricatura à parte, não querem um retorno à Idade Média ou (como quer a Veja) “às cavernas”, e sim uma modernização sob seu controle. E para entender, é preciso começar por 1951, quando o popular Mohammed Mossadegh, eleito primeiro-ministro do Irã – então uma monarquia constitucional – nacionalizou o petróleo da Anglo-Iranian, à frente de uma onda de entusiasmo nacional.

Em 1953, pressionado pelos EUA, o Xá o demitiu, mas o primeiro-ministro liderou a reação popular e expulsou o soberano. Meses depois, EUA e Reino Unido orquestraram um golpe militar que depôs Mossadegh e entregou o governo ao Xá e o petróleo a um consórcio formado pela Anglo-Iranian (hoje British Petroleum), Shell e um grupo de empresas estadunidenses e francesas. O monarca passou a governar autoritariamente, mantendo Mossadegh em prisão domiciliar até a morte.

O nacionalismo laico e as esquerdas foram sufocados, mas não se ousava reprimir com a mesma brutalidade a religião tradicional, que pôde capitalizar a insatisfação não só com a ditadura política (como a Igreja Católica na Polônia), como também com a concentração de renda e ampliação dos abismos sociais, com as elites ocidentalizadas e a subserviência às potências ocidentais.

O prestígio popular de Ruhollah Khomeini e o tradicionalismo religioso pegaram de surpresa os movimentos progressistas que apoiaram a revolta popular e acreditavam serem seus beneficiários. Com uma visão ingenuamente linear do progresso, nacionalistas, liberais e socialistas haviam acreditado que a religião não podia mais conduzir a história. Mas foi o que se deu, como não se via desde os puritanos de Oliver Cromwell, na Inglaterra do século XVII.

No contexto iraniano, a religião é unificadora: apenas 51% da população é persa, mas 98% é muçulmana, 90% dela xiita e as minorias religiosas são dispersas. Só xiitas ortodoxos têm altos cargos no regime, mas a etnia não importa nem dita alianças. Khomeini era persa, mas seu sucessor, Ali Khamenei, é azeri e aliado do persa Mahmoud Ahmadinejad, cujo principal rival é Mir-Hossein Mousavi, azeri. Quando Saddam Hussein (apoiado pelos EUA) atacou o Irã, esperava ter apoio da minoria árabe, mas esta, xiita, foi leal aos aiatolás.

Por outro lado, a religião limita o alcance da revolução. Seu modelo não é aplicável nem mesmo a outras nações muçulmanas, pois o Irã é praticamente a única onde é hegemônico o islamismo xiita. Tem prestígio entre comunidades xiitas de outros países (minoritárias, exceto no Iraque, em Bahrein e no Azerbaijão) e a bem-sucedida resistência do Hezbollah xiita (apoiado abertamente pelo Irã) à invasão israelense de 2006 parece ter estimulado conversões em certos países árabes. Mas isso afasta ainda mais Teerã da maior parte do Oriente Médio. No passado, Saddam reprimiu com violência seus xiitas, suspeitos de simpatia pelo Irã. Hoje, com ou sem razão, a Arábia Saudita e o Iêmen acusam Teerã pela rebelião xiita em sua fronteira comum. Emirados do Golfo e nações árabes da África do Norte receiam o crescimento e rebeldia de suas minorias xiitas.

Contra o isolamento, o regime de Khomeini combinou religião e terceiro-mundismo em um discurso que satanizou os EUA e seu aliado mais notório no Oriente Médio, Israel, buscando aliados em outras forças anti-imperialistas, muçulmanas ou não. Após a morte de Khomeini (1989), o pragmatismo de Akbar Rafsanjani (1989-1997) e mais ainda o relativo liberalismo de Mohammad Khatami (1997-2005) jogaram água nessa fervura, mas a abertura liberal fracassou aos olhos das massas. Suas dificuldades aumentaram, a renda se concentrou, e nem por isso melhoraram as relações com o Ocidente – pelo contrário, Khatami foi humilhado e o Irã listado como parte do “eixo do mal” e candidato a “mudança de regime” quando da invasão do Iraque.

Como nos países latino-americanos, o fracasso do liberalismo gerou uma reação que, no Irã, tomou a forma de um populismo conservador e religioso, embora comprometido com causas populares como a distribuição da renda do petróleo aos pobres. Mahmoud Ahmadinejad, engenheiro e bem-sucedido prefeito de Teerã, filho de migrantes do interior, surgiu como liderança admirada pelas massas e aprovada pelo clero conservador.

O discurso antiocidental e antissionista voltou à baila, exacerbado pela invasão do Iraque e pelo agravamento do conflito na Palestina nos anos anteriores, a ponto de apelar para temas identificados com o antissemitismo. Mais preocupante nesse aspecto que o comentário segundo o qual “o regime que ocupa Jerusalém precisa desaparecer das páginas do tempo” é a afirmação de que o Holocausto “é um mito”. Não surgiu do Irã: foi adotada para apelar às massas árabes que já a proclamavam, principalmente palestinos que, exasperados com a insistência israelense em invocar a Shoah para legitimar sua expansão territorial e a expulsão dos árabes, passaram da denúncia da exploração interminável do genocídio nazista ao extremo de negá-la como fato.

É vergonhoso, mas não faz do Irã outro III Reich. Ao contrário do Xá, de Saddam Hussein, do Paquistão e de Israel, o regime dos aiatolás jamais atacou vizinhos ou reivindicou seus territórios e, apesar do discurso hostil a Israel, tem boas relações com sua minoria judaica. Metade dos 80 mil judeus iranianos emigrou logo após a revolução, mas muitos dos que ficaram lutaram ao lado da Guarda Republicana contra a invasão iraquiana apoiada pelos EUA. Nas últimas décadas, poucas dezenas aceitaram a ajuda oferecida por organizações israelenses aos que quiserem emigrar. Não sofrem restrições no culto, educação ou viagens ao exterior, e seu líder, Haroun Yashayaei, criticou, sem ser punido, Ahmadinejad por este questionar o Holocausto.

Considere-se agora a questão nuclear, combinada com a disposição de Teerã de confrontar verbalmente o Ocidente, os EUA e Israel e sua bem avançada tecnologia de mísseis e foguetes. O projeto foi iniciado pelo Xá, com apoio dos EUA e de países europeus que forneceram usinas nucleares e tecnologia de enriquecimento de urânio e de processamento de plutônio, com aprovação de Gerald Ford e seu gabinete, incluindo Dick Cheney e Donald Rumsfeld.

Os EUA não fizeram objeções quando Israel, Índia e Paquistão obtiveram armas nucleares e estavam dispostos a aceitar que o Xá as tivesse, como Henry Kissinger veio a admitir. Há razões para aplicar outros pesos e medidas aos aiatolás, que insistem em que seu programa é pacífico?

A ameaça iraniana tem sido exagerada, principalmente por Israel, interessado em desviar a atenção do mundo e de seus eleitores do problema palestino. Como a antiga União Soviética, o Irã tem sido conduzido de maneira rígida, mas sensata. Suas elites buscam prosperidade e projeção internacional com estratégias de longo prazo e nada têm a ver com o fanatismo suicida da Al-Qaeda. Mesmo se conseguissem algumas bombas atômicas, não há por que pensar que as usassem em um ataque não provocado a potências ocidentais ou a Israel, capazes de responder com dez vezes mais violência.

Mesmo a construção de uma segunda instalação de enriquecimento, protegida sob as montanhas de Qom, enquadra-se nessa concepção. Sendo ameaçados de bombardeio por estadunidenses e israelenses desde 2002, mostrar que tal ataque seria inútil é uma estratégia racional de dissuasão, pois o programa é uma política de Estado com a qual todas as forças políticas concordam. Inclusive o rival Mousavi, que retomou o programa quando primeiro-ministro (1981-1989) e continua a defendê-lo ardorosamente.

Funcionários têm dito a jornalistas ocidentais que Ahmadinejad seria favorável a um acordo de supervisão nuclear pela Agência de Energia Atômica da ONU, mas é antagonizado por “querer vender nossos interesses nucleares” tanto no clero quanto no Parlamento – não só pelos conservadores, como também pelos mesmos moderados que o criticaram, na campanha eleitoral, por antagonizar o Ocidente. Se não abriram mão do programa quando estavam sós e Washington estava no auge do poder político e econômico, por que o fariam agora que o poder relativo dos EUA diminuiu, Rússia, China, Síria, Venezuela, Turquia e outros têm boas relações com Teerã e o petróleo está em alta?

Se o Brasil tem alguma influência no Oriente Médio – como acreditam tanto os jornais israelenses e o presidente Shimon Peres, que veio visitar Lula enquanto seu primeiro-ministro falava com Obama, quanto Mahmoud Ahmadinejad e Mahmoud Abbas, que vêm em seguida –, deveria usá-la tendo em vista que tanto a teocracia do Irã quanto o Estado judeu de Israel são parte de qualquer futuro previsível, e a primeira, apesar de menos democrática, não é pior enquanto ameaça à paz na região. Todo incentivo ao respeito à igualdade, liberdade e direitos humanos no Irã é elogiável, mas isso não justifica discriminá-lo ou prejulgá-lo no que se refere às relações internacionais. •

Fonte: www.cartacapital.com.br


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