sexta-feira, 19 de março de 2010

Escravizados livres

Escravizados livres

por Adriano Belisário

Ao invés da abolição feita por brancos capitalistas, a liberdade como uma conquista dos negros após séculos de resistência. No lugar dos antigos coronéis, as grandes empresas do agronegócio. Outras faces da escravidão foram apresentadas ao público pelos pesquisadores Marcelo Badaró e Keyla Grinberg no debate do projeto Biblioteca Fazendo História de 16 de março.

Professora de História da UNIRIO, Keyla mostrou como a historiografia sobre abolição vem sendo atualizada, enfatizando o papel ativo dos negros neste processo. “A fronteira entre escravidão e liberdade era precária. As possibilidades de acesso à Justiça por parte dos escravos evidenciam uma situação bem tensa”, disse. Segundo ela, assim como era possível para um escravo conseguir a liberdade nos tribunais, também não era difícil um liberto ser re-escravizado. Tema de artigo publicado na RHBN, o caso de Liberata ilustra bem isto. “Essa história daria um filme”, garante a historiadora.

Conhecidos como ações de liberdade, os processos judiciais movidos por escravos ganharam grande repercussão nos debates jurídicos do país, a partir da segunda metade do século XIX. Ainda que os juízes não fossem necessariamente abolicionistas, criou-se uma jurisprudência favorável à libertação dos escravos. Um exemplo era a revogação da alforria por ingratidão, um direito garantido aos senhores de escravos que, aos poucos, se tornou letra morta.

“Negros libertos e escravos procuravam mais a Justiça contra seus senhores do que o contrário. Nestes casos, o Estado quebrava a relação de propriedade entre ambos, afirmando limites para o poder senhorial. A escravidão no Brasil foi uma das que teve mais alforrias. São ações individuais que foram engrossando o caldo que levou à abolição”, explicou Grinberg.

Mas os processos arrastados nos tribunais nem sempre davam conta das demandas dos escravos. Antecipando táticas posteriormente utilizadas pelo movimento operário, como os sindicatos e as greves, muitos deles se reuniam em associações e também cruzavam os braços em forma de protesto.

Propriedade de Barão de Mauá, a fábrica Ponta da Areia foi palco de um dos primeiros levantes do gênero. Em 1857, cerca de trinta escravos que trabalhavam no local paralisaram seus trabalhos até que fossem soltos três parceiros presos por desobediência, exigência prontamente acatada pelo chefe de polícia.

Segundo Badaró, os escravos se agrupavam em associações de ajuda mútua, como a Sociedade Beneficente da Nação Conga, criada antes de 1861, e chegavam até mesmo a solicitar o reconhecimento oficial destas organizações. “Por mais que fossem negados, estes pedidos aconteciam depois que as associações já estavam fundadas e funcionando. Os sindicatos são herdeiros desta tradição”, esclarece o professor da Universidade Federal Fluminense.

Escravidão hoje

Segundo ele, contra a exploração trabalhista, escravos e libertos deram as mão no século XIX. É o caso de João de Mattos, que organizou em 1876 uma greve dos trabalhadores de padaria em Santos, aproveitando a ocasião para forjar cartas de alforria e libertar cativos. “Ele dizia que após o fim da escravidão de fato, continuava a luta pelos escravizados livres”, sublinha Badaró.

Atual ainda hoje, a frase de João de Mattos serve perfeitamente para aqueles que estão em condições “análogas à escravidão”. Em geral, são trabalhadores do campo que, presos por dívidas, não possuem mobilidade, vivem em condições precárias e sofrem maus tratos. “É uma situação que não é residual. Pelo contrário, ela tem crescido. Até o início de 2000, ela predominava nas regiões norte e nordeste. Hoje, é no sudeste e em áreas de expansão do agronegócio, com grandes empresas, holdings”, afirma Marcelo Badaró.

Apesar das semelhanças, o historiador não vê continuidade entre a escravidão de outrora e o trabalho análogo a esta de hoje em dia. “Não é um resquício do passado, mas algo que se atualiza sempre no capitalismo contemporâneo”, assegura.

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