A capacidade de dissuasão do Irã é vista por Washington como um exercício ilegítimo de soberania que interfere nos desígnios globais dos Estados Unidos. Ameaça, especialmente, o controle dos EUA sobre os recursos energéticos do Oriente Médio, uma alta prioridade dos estrategistas desde a Segunda Guerra Mundial, recursos que rendem frutos como o “controle do mundo”. Além disso, o Irã também estaria buscando expandir sua influência, o que provocaria a desestabilização da região. A invasão e ocupação militar do Irã seriam a estabilização. O artigo é de Noam Chomsky.
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A ameaça calamitosa do Irã é largamente reconhecida como a crise política mais séria da administração Obama. O Congresso dos EUA acaba de ratificar as sanções contra o Irã, com medidas ainda mais severas contra as empresas do país. A administração Obama tem expandido rapidamente sua capacidade ofensiva na ilha de Diego Garcia, território da Grã Bretanha, que expulsou a população do local para que os EUA pudessem erguer a grande base militar que usa para atacar o Oriente Médio e a Ásia Central. A Marinha informa da oferta de envio de um submarino equipado com mísseis teleguiados de potência nuclear e com mísseis Tomahawk, os quais podem carregar ogivas, à ilha. Cada submarino desses é reportado como tendo o poder de fogo de uma frota de guerra.
De acordo com um documento descritivo de carga obtido pelo Sunday Herald (Glasgow), o equipamento militar que Obama despachou inclui 387 “bunker busters” [bombas destruidoras de bunkers] usadas para atacar estruturas subterrâneas fortificadas. Os preparativos para esses “ataques maciços de bunker busters”, as mais poderosas bombas no pequeno arsenal de armas nucleares, foram iniciados na administração Bush, mas se enfraqueceram. Ao tomar posse, Obama imediatamente acelerou os planos, e eles devem ser desenvolvidos por vários anos ainda, visando especificamente o Irã.
“Eles estão em marcha acelerada para a destruição do Irã”, diz Dan Plesch, diretor do Centro de Estudos Internacionais e Diplomacia na Universidade de Londres. “Bombardeiros e mísseis de longo alcance estão prontos hoje para destruir 10.000 alvos no Irã em poucas horas”, afirmou. “O poder de fogo das forças dos EUA quaduplicaram desde 2003”, tendo sido acelerado durante a administração Obama.
A imprensa árabe reporta que uma frota norteamericana (com um navio israelense) atravessou o Canal de Suez em direção ao Golfo Pérsico, onde sua missão é “implementar as sanções contra o Irã e supervisionar os navios que chegam e partem do Irã”. A mídia israelense e a britânica reportam que a Arábia Saudita está providenciando um corredor para o bombardeio israelense do Irã (negado pela Arábia Saudita). Em seu retorno do Afeganistão para reassegurar aos aliados da OTAN que os EUA continuam no comando depois da substituição do General McChrystal por seu superior, General Petraeus, o chefe de Estado-Maior conjunto, almirante Michael Mullen visitou Israel para se encontrar com o chefe das Forças Armadas e militar sênior do staff de inteligência e planejamento de unidades de combate, Gabi Ashkenazi, continuando o diálogo estratégico anual entre Israel e EUA, em Tel Aviv. O encontro esteve focado “na preparação de ambos, Israel e EUA para a possibilidade de o Irã tornar-se uma potência nuclear”, de acordo com o Haaretz, o qual reporta, além disso, que Mullen disse: “eu sempre tento ver os desafios da perspectiva israelense”. Mullen e Ashkenazi estão em contato permanente por telefone.
O aumento das ameaças de ações militares contra o Irã está, é claro, violando a Carta das Nações Unidas, e especificamente violando a Resolução 1887 de setembro de 2009 do Conselho de Segurança, que reafirmou a convocação de todos os estados para resolver as questões nucleares pacificamente, em acordo com a Carta, que bane o uso ou a ameaça do uso da força.
Alguns analistas respeitados descrevem a ameaça iraniana em termos apocalípticos. Amitai Etzioni alerta que “Os EUA terão de se confrontar com o Irã ou desistir do Oriente Médio”, nada menos. Se o programa nuclear iraniano prosseguir, ele diz, Turquia, Arábia Saudita e outros estados vão “se mover em direção” à nova “superpotência” iraniana. Numa retórica menos fervorosa, uma aliança regional pode tomar forma independentemente dos EUA. No jornal das forças armadas dos EUA, o Military Review, Eztioni defende um ataque dos Estados Unidos que mire não apenas as instalações nucleares iranianas, mas também alvos não nucleares, inclusive da infraestrutura – quer dizer, na sociedade civil. “Esse tipo de ação militar é semelhante às sanções – causando 'pânico' para mudar o comportamento, embora por meios muito mais poderosos”.
Deixando de lado esse tipo de pronunciamento estreito, qual é exatamente a ameaça iraniana? Uma resposta autorizada foi dada em abril deste ano, no estudo do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, Balanço Militar 2010. O regime clerical brutal é sem dúvida uma ameaça ao seu próprio povo, embora não seja particularmente mais alta em comparação aos aliados dos EUA na região. Mas não é isso o que preocupa o Instituto; o Instituto está preocupado com a ameaça que o Irã oferece à região e ao mundo.
O estudo torna claro que a ameaça iraniana não é militar. O gasto militar iraniano é “relativamente baixo em comparação com os demais gastos na região”, e menos de 2% do estadunidense. A doutrina militar do Irã é estritamente defensiva... desenhada para protelar uma invasão e forçar uma solução diplomática às hostilidades”. O Irã tem apenas “uma capacidade limitada de projetar forças para além das suas fronteiras”. No que concerne à opção nuclear, “o programa nuclear iraniano e sua vontade de manter aberta a possibilidade de desenvolvimento de armas nucleares são parte central de sua estratégia de dissuasão”.
Mesmo que a ameaça iraniana não seja militar, isso não significa que deva ser tolerável para Washington. A capacidade de dissuasão do Irã é um exercício ilegítimo de soberania que interfere nos desígnios globais dos EUA. Especificamente, ameaça o controle dos EUA dos recursos energéticos do Oriente Médio, uma alta prioridade dos estrategistas desde a Segunda Guerra Mundial, recursos que rendem frutos como o “controle substancial do mundo”, segundo um influente conselheiro (A.A. Berle).
A ameaça do Irã vai além da dissuasão, contudo. O país também está buscando expandir sua influência. Como o Instituto de Estudos formula a ameaça, o Irã está “desestabilizando” a região. A invasão e ocupação militar estadunidense do Irã é “estabilização”. Os esforços do Irã para expandirem sua influência nos países vizinhos é “desestabilização”, logo, é claramente ilegítima. Deve ser anotado que esse tipo de uso revelador dessas expresssões é rotineiro. Então, o proeminente analista de política externa, James Chace, ex-editor do principal jornal do establishment, o Foreign Affairs, estava usando o termo “estabilidade” adequadamente, em seu sentido técnico, quando explicou que, para se obter “estabilidade” no Chile seria necessário “desestabilizar” o país (por meio da derrubada do governo eleito de Allende e da instalação da ditadura Pinochet).
Além desses crimes, o Irã está dando apoio ao terrorismo, segundo o informe do mesmo Instituto; por meio do suporte ao Hezbollah e ao Hamas, as mais importantes forças políticas no Líbano e na Palestina – como se eleições importassem. A coalizão do Hezbollah venceu facilmente as eleições no Líbano no último (2009) pleito. O Hamas venceu a eleição de 2006 na Palestina, levando os EUA e Israel a instituírem o rude e brutal bloqueio de Gaza, para punirem os infiéis por terem votado errado nas eleições livres. Essas foram as únicas eleições relativamente livres no mundo árabe. É normal a opinião da elite temer a ameaça da democracia e agir para dissuadi-la; mas este é, antes, um caso notável, particularmente porque se dá junto ao forte apoio dos EUA às ditaduras regionais, e particularmente notável diante do forte elogio de Obama ao ditador brutal do Egito, Mubarak, a caminho de seu famoso discurso ao mundo islãmico, no Cairo.
Os atos terroristas atribuídos ao Hamas e ao Hezbollah tornam-se opacos em comparação com o terrorismo estadunidense e israelense, na mesma região, mas ainda assim eles merecem mais atenção.
Em 25 de maio o Líbano celebrou seu feriado nacional, o Dia da Liberação, comemorando a retirada israelense do sul do Líbano depois de 22 anos de ocupação, como um resultado da resistência do Hezbollah – descrita pelas autoridades israelenses como “agressão iraniana” contra Israel na área ocupada pelo Líbano (Ephraim Sneh). Este também é um uso imperial comum. Assim, o presidente John F. Kennedy condenou o “ataque a partir de dentro, manipulado pelo Norte”. O ataque da resistência sul-vietnamita contra os bombardeiros de Kennedy, armas químicas que levaram camponeses a virtuais campos de concentração, e outras medidas benignas do gênero foram denunciados como “agressões internas” pelo embaixador dos EUA de Kennedy, o herói liberal Adlai Stevenson. O apoio dos norte-vietnamitas aos seus compatriotas no sul ocupado pelos EUA é agressão, interferência intolerável na honrada missão de Washington.
Os conselheiros de Kennedy, Arthur Schlesinger e Theodore Sorenson, considerados pombas da paz, também elogiaram a intervenção de Washington para reverter a “agressão” no Vietnã do Sul – da resistência indígena, como eles ficaram sabendo, ao menos se se lê os informes da inteligência dos EUA. Em 1955 a Junta dos Chefes das Forças Armadas estadunidense definiu vários tipos de “agressões”, incluindo “agressões que não as armadas, isto é, ações políticas ou subversão”. Por exemplo, um levante interno contra uma política de estado imposta pelos EUA, ou eleições cujos resultados deram errado. O uso também é comum nos comentários de acadêmicos e analistas políticos, e faz sentido com base na aceitação da tese de que Nós Temos o Mundo.
O Hamas resiste à ocupação militar israelense e a suas ações ilegais e violentas nos territórios ocupados. É acusado de se recusar a reconhecer Israel (partidos políticos não reconhecem estados). Em contraste, os EUA e Israel não só não reconhecem a Palestina como têm agido por décadas para assegurar que ela nunca venha a existir em qualquer forma que tenha sentido; o partido do governo em Israel na sua plataforma de campanha de 1999 barrava a existência de qualquer Estado palestino.
O Hamas é acusado de lançar foguetes nos assentamentos israelenses da fronteira com Gaza, atos sem dúvida criminosos, embora uma fração da violência de Israel em Gaza, isolada num outro lugar. É importante ter em mente, nessa conexão, que os EUA e Israel sabem exatamente como eliminar o terror que eles deploram com tanta paixão. Oficialmente Israel concede que, não haveria foguetes do Hamas caso Israel cumprisse parcialmente com o acordo de trégua de 2008. Israel rejeitou a oferta do Hamas de renovar a trégua, preferindo lançar o ataque assassino e destrutivo na Operação Chumbo Fundido contra Gaza em dezembro de 2008, com pleno apoio dos EUA, uma exploração da agressão assassina sem o menor pretexto crível ou mesmo bases legais ou morais.
O modelo de democracia no mundo muçulmano, a despeito das falhas graves, é a Turquia, que tem eleições relativamente livres, e também tem sido alvo de críticas severas nos EUA. O caso mais extremo foi quando o governo seguiu a posição de 95% da sua população e se recusou a participar da invasão do Iraque, obtendo a condenação brusca de Washington por seu fracasso em compreender como um governo democrático deve se comportar: sob nosso conceito de democracia, a voz do Mestre determina a política, não a quase unânime voz da população.
A administração Obama ficou mais uma vez enfurecida quando a Turquia se juntou ao Brasil na tentativa de acordo com o Irã para que o país restrinja seu enriquecimento de urânio. Obama elogiou a iniciativa numa carta ao presidente Lula, do Brasil, aparentemente dando de barato que o acordo fracassaria, fornecendo assim armas de propaganda contra o Irã. Quando a tentativa ocorreu, os EUA ficaram furiosos, e rapidamente minaram o acordo, chamando através do Conselho de Segurança uma resolução com novas sanções contra o Irã, que eram tão sem sentido que a China concordou alegremente pela primeira vez – reconhecendo que ao menos as sanções iriam impedir os interesses do Ocidente em competirem com a China pelos recursos iranianos. Mais uma vez, Washington agiu diretamente para assegurar que ninguém interferisse no controle dos EUA sobre a região.
Não foi uma surpresa o voto de Turquia e Brasil contra às sanções propostas pelos EUA no Conselho de Segurança; o outro membro regional do Conselho, o Líbano, absteve-se. Essas sanções levantaram novas preocupações em Washington. Philip Gordon, o diplomata da administração Obama para assuntos europeus alertou a Turquia de que as suas ações não tinham sido entendidas nos EUA e que o país deve “demonstrar seu compromissode parceria com o Ocidente”, reportou a AP, “uma rara advertência de um aliado crucial da OTAN”.
A classe política entende da mesma maneira. Steven A. Cook, um acadêmico do Conselho de Política Externa, observou que a questão crítica agora é “como mantemos a Turquia no seu lugar?” - seguindo as regras, como um bom democrata. Uma manchete do New York Times capturou o ânimo geral: “O Acordo do Irã é visto como uma marca do legado da liderança brasileira”. Em resumo, faça o que eu digo, ou arque com as consequências.
Não há sinais de que outros países na região estejam mais favoráveis às sanções dos EUA do que a Turquia. No lado dos opositores ao Irã, por exemplo, o Paquistão e o Irã, reunidos na Turquia recentemente assinaram um acordo para a construção de um novo oleoduto. Ainda mais preocupante para os EUA é que esse oleoduto deve se estender até a Índia. O Tratado de 2008 dos EUA com a Índia apoiando seus programas nucleares – e indiretamente seus programas de armas nucleares – visava impedir que a Índia fizesse parte do acordo para esse oleoduto, segundo Moeed Yusuf, um conselheiro do sul da Ásia para o United States Institute of Peace, expressando uma interpretação comum. A Índia e o Paquistão são duas das três potências nucleares que se recusaram a assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o terceiro é Israel. Todos os três países desenvolveram armas nucleares com o apoio dos EUA, e ainda o fazem.
Nenhuma pessoa em sã consciência quer que o Irã desenvolva armas nucleares; nem o Irã nem ninguém. Uma maneira óbvia de mitigar ou eliminar essas ameças é estabelecer uma Zona Livre de Armas Nucleares [NFWZ em sua sigla em inglês] no Oriente Médio. A questão foi levantada (mais uma vez) na Conferência de Exame do Tratado de Não Proliferação Nuclear na sede das Nações Unidas no início de maio de 2010. O Egito, como representante de 118 nações do Movimento Não-Alinhado propôs que a conferência apresentasse um plano para dar início às negociações em 2011 ou uma NWFZ no Oriente Médio, como foi acordado pelo Ocidente, inclusive pelos EUA, na Conferência de Exame de 1995.
Washington concorda formalmente, mas insiste que Israel se mantenha isento – e não tem dado pistas de que esses dispositivos sejam aplicados a si mesmo. Ainda não chegou o momento de se criar uma zona, disse a Secretária de Estado Hillary Clinton nessa Conferência. Ao mesmo tempo, o Washington insistia que nenhuma proposta voltada para que o programa nuclear israelense se sujeite aos auspícios da Agência Internacional de Energia Atômica [IAEA em sua sigla em inglês] poderia ser aceita. Também não aceitou as exigências de que os signatários do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, especialmente os EUA, liberassem informações sobre “as instalações e atividades nucleares israelenses, incluindo informações pertencentes a transferências nucleares prévias a Israel”. A técnica de evasão de Obama visa adotar a posição israelense segundo a qual uma proposta dessas deve estar condicionada por um amplo acordo de paz, que os EUA podem adiar indefinidamente, como vem fazendo há 35 anos, com raras e temporárias exceções.
Ao mesmo tempo, Yukiya Amano, chefe da Agência Internacional de Energia Atômica pediu aos ministros de relações exteriores de seus 151 países-membros que trocassem opiniões a respeito de como implementar uma resolução demandando a Israel que “faça parte” no Tratado de Não-Proliferação Nuclear e que deixe suas instalações nucleares abertas à supervisão da IAEA, reportou a AP.
Raramente é registrado que os EUA e a Grã Bretanha têm uma responsabilidade especial em trabalhar para estabelecer uma NWFZ no Oriente Médio. A fim de concederem alguma aparência legal para sua invasão do Iraque em 2003, eles apelaram à Resolução 687 do Conselho de Segurança (1991), que exijiu do Iraque que desse fim ao desenvolvimento de suas armas de destruição em massa. Os EUA e a Grã Bretanha disseram que não fizeram isso. Não precisamos esperar os pedidos de desculpas, mas essa Resolução obriga os seus signatários a se engajarem na constituição de uma NWFZ no Oriente Médio.
De maneira patente, podemos acrescentar que a insistência dos EUA em manter instalações nucleares na ilha Diego Garcia mina a Zona Livre de Armas Nucleares (NFWZ) estabelecida pela União Africana, bem como Washington continua a bloquear a constituição de uma NFWZ ao excluir suas dependências.
O compromisso retórico de Obama com a não-proliferação tem recebido muitos elogios, até um prêmio Nobel da Paz. Um passo prático no estabelecimento dessa direção é o estabelecimento de uma NFWZ. Outro é a retirada do apoio a programas nucleares dos três não-signatários do Tratado de Não-Proliferação [Paquistão, Índia e Israel]. Como sempre, retórica e ações raramente se alinham, de fato estão em contradição direta neste caso, fatos que ocorrem com pouca atenção.
Em vez de dar passos práticos na direção de reduzir a verdadeiramente calamitosa ameaça de proliferação de armas nucleares, os EUA devem dar passos maiores na direção do reforço do seu controle das regiões produtoras de petróleo no Oriente Médio, por meio da violência, caso outros meios não sejam bem sucedidos. Isso é compreensível e até razoável, sob a prevalência de uma doutrina imperial.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16770
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