sábado, 30 de outubro de 2010

Empresas alemãs lucram com a escravidão infantil no Usbequistão

Todo outono, crianças do Usbequistão são obrigadas a trabalhar na colheita do algodão, por um pequeno pagamento. Empresas alemãs estão entre as que lucram com essa violação dos direitos humanos.
No Usbequistão, as férias de verão começam em meados de setembro, quando o calor diminui. Ela dura cerca de dois meses, mas muitas crianças quase não veem seus pais durante esse tempo. São obrigadas a servir a seu país colhendo algodão.

Um obscuro ritual que data do antigo regime soviético se desenrola durante a temporada de colheita, no outono, nessa república da Ásia Central, quando o presidente Islam Karimov mobiliza as massas. Cerca de 2 milhões de escolares são então obrigados a trabalhar nos campos colhendo o "ouro branco", como é chamado o algodão desde o tempo do ditador soviético Josef Stalin. Além do gás natural e do ouro, o algodão é uma das mais importantes fontes de divisas para a elite usbeque. O preço do algodão está atualmente no nível mais alto desde que começou seu comércio há 140 anos.

Mas os jovens colhedores de algodão não veem muito desse lucro. Nazira tinha apenas 11 anos quando trabalhou nos campos no ano passado. Durante um mês inteiro, ela, seus professores e as outras crianças de sua classe em uma aldeia perto de Andijan, no leste do Usbequistão, começavam a colher às 7 da manhã e trabalhavam até as primeiras horas da noite.

As crianças tinham de cumprir sua cota de 10 quilos por dia. "Eu mal conseguia apanhar 3 quilos", relata Nazira. Ela ganhava 60 sums por quilo (0,03 euro). Depois de um mês de trabalho, deu o dinheiro para sua mãe. "Ela o usou para comprar um boné de inverno para mim, mas não foi suficiente e teve de pagar um pouco a mais."

Surras por não cumprir as cotas

As crianças um pouco mais velhas que foram enviadas para trabalhar na região se saíram ainda pior. Seus professores simplesmente ficavam com os salários das crianças. As que não cumpriam as cotas também eram surradas. Os poucos pais que objetaram ao recrutamento forçado de seus filhos foram assediados por professores que visitaram suas casas.

Em outubro de 2008, Umida Donisheva, uma garota de 17 anos, se enforcou em uma árvore na borda de um campo de algodão. Segundo o rápido relatório de um site de notícias usbeque, Umida não conseguiu suportar a pressão de seus professores para colher cada vez mais algodão.

Segundo Joanna Ewart-James, da Anti-Slavery International [Antiescravidão Internacional], o que está acontecendo no Usbequistão é simplesmente "escravidão infantil". Embora o Usbequistão tenha assinado a convenção da ONU contra as piores formas de escravidão e negue qualquer desvio, pouco mudou para as crianças das áreas rurais, diz Ewart-James.
A ativista participou recentemente de conferências internacionais sobre algodão no Texas (EUA) e em Liverpool (Inglaterra). Representantes dos principais revendedores, como a americana Cargill, o grupo suíço Reinhart e a empresa alemã Otto Stadtlander, de Brêmen, estavam lá, mas Ewart-James afirma que foi ridicularizada quando tentou abordar a questão da mão-de-obra infantil.

O clima otimista da indústria poderá ser um pouco abalado esta semana. Uma queixa foi depositada contra sete negociantes de algodão europeus na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Segundo a acusação, as empresas violaram princípios da OCDE para companhias multinacionais, ao lucrar com o trabalho infantil usbeque.

Na Alemanha, o Centro Europeu para Direitos Humanos e Constitucionais (ECCHR na sigla em inglês) está fazendo uma queixa contra a Stadtlander, uma grande negociante de algodão europeia com mais de 100 milhões de euros em vendas anuais. Durante anos a empresa teve um escritório em Tashkent, onde mantém boas relações com o governo Karimov.

Violações dos direitos humanos

Embora a ECCHR ainda seja uma organização relativamente jovem, já obteve uma vitória contra a rede de supermercados Lidl, que havia afirmado em seus anúncios que seus produtos eram produzidos sob condições de trabalho justas. A Stadtlander ajuda e aprova violações de direitos humanos, diz a coordenadora do ECCHR, Miriam Saage-Maass, mas ela nota que é um caso contestado.

Ao contrário da Lidl, a firma baseada em Brêmen não faz em sua publicidade qualquer alegação sobre o tratamento justo dos trabalhadores. Além de perguntas embaraçosas, a Stadtlander tem pouco a temer no momento. E as diretrizes da OCDE estão cheias de regulamentações de metas, ou o que Saage-Maass, que também é advogada, chama de "lei branda" sem dentes. Embora a lei internacional da Organização Mundial de Comércio inclua dispositivos sobre discriminação, eles só se aplicam a produtos e à livre movimentação de bens. As condições sob as quais os produtos são feitos não são críticas para os guardiões do livre comércio.

A queixa também se destina a expor uma brecha legal absurda, qual seja, que as empresas que lucram com violações dos direitos humanos são quase intocáveis juridicamente. Seria útil se as diretrizes da OCDE incluíssem sanções como a suspensão da ajuda econômica. Mas Saage-Maass vê poucas evidências de interesse na maioria dos escritórios de contato da OCDE em países individuais. "Com frequência eles são muito ineficazes", ela diz.

A direção da Otto Stadtlander ignorou as solicitações do ECCHR durante mais de um ano, acrescenta Saage-Maass. A companhia também não quis responder às perguntas do "Spiegel".

"Nova parceria" da Alemanha com Karimov

O bom relacionamento da Stadtlander com o Usbequistão está totalmente de acordo com as políticas do governo alemão. Uma "nova parceria" liga a Alemanha ao presidente Karimov, e soldados alemães embarcam para o Afeganistão de uma base militar alemã no Usbequistão.

Karimov, uma ex-autoridade comunista, se converteu ao capitalismo sem abandonar suas atitudes stalinistas. Ele é eleito a intervalos irregulares por uma maioria absurda de votos. Até os candidatos da oposição admitiram votar nele. Críticos do regime em seu país supostamente foram mergulhados em água fervente. O governo também já disparou contra a população, como fez em Andijan em 2005, quando mais de 700 membros da oposição teriam sido mortos.

Isto levou muitos países europeus a pedir sanções, mas a Alemanha não os acompanhou. Pelo contrário, ministros alemães visitaram o país com grandes delegações empresariais.

O governo alemão não se dispõe a dizer como a parceria melhorou as condições para as crianças, mas uma porta-voz menciona um "sistema de monitoramento" e o "diálogo regular".

Bancos alemães também lucram com o comércio de algodão. Um deles é o Commerzbank, parcialmente estatal, que tem um escritório em Tashkent. O banco participou do financiamento de contratos de algodão para clientes europeus no Usbequistão "durante anos", diz um porta-voz. O Deutsche Bank também financia negócios no Usbequistão.

Varejistas como C&A e Walmart hoje tentam não estocar roupas que contenham algodão do Usbequistão. Mas é difícil rastrear o algodão usbeque, que os negociantes misturam com o produto de outros países.

Agricultores ganham um terço do valor de exportação

Apesar de seus abundantes recursos naturais, a população do Usbequistão é tão pobre quanto sempre foi. As fazendas são operadas de modo ineficiente, com equipamento antiquado. Em Sheikh Lar, uma aldeia a noroeste da cidade de Samarkand, não se veem mais as colheitadeiras que eram usadas na era soviética. Embora os agricultores sejam oficialmente autônomos, eles alugam a terra do governo, compram fertilizantes de empresas estatais e têm de cumprir suas cotas. Eles recebem um terço do preço de exportação, enquanto o governo Karimov coleta o resto.

A cultura do algodão também é enormemente prejudicial ao meio ambiente. A irrigação das fazendas de algodão é o principal motivo pelo qual o mar de Aral, no oeste do Usbequistão, encolheu para apenas um décimo de seu tamanho original. As 24 espécies de peixes antes encontradas no lago estão extintas. O desemprego na região é de 70%.

Umida Niyasova, uma ativista de direitos humanos do Usbequistão que já esteve nas prisões de Karimov, hoje documenta em Berlim a situação de seu país. Ela recebe relatórios de acidentes de trabalho e condições de higiene indizíveis nos acampamentos perto dos campos. O pai de uma garota que foi obrigada a colher algodão na região de Jisak, no sudoeste, acaba de contatá-la. "A polícia manteve os pais sob vigilância durante horas antes que eles pudessem ver sua filha", diz Niyasova.

A Stadtlander pinta uma imagem diferente do Usbequistão. Nos últimos anos a empresa alemã patrocinou uma comemoração do festival de primavera usbeque na Bolsa de Algodão em Brêmen (noroeste da Alemanha). "Plov", um cozido usbeque, foi servido e dançarinas do país em vestidos brilhantes se apresentaram enquanto grandes cartazes mostravam a visão de Karimov das cidades do futuro.

Poderia ser um programa de TV transmitido diretamente do Usbequistão.

Fonte: Der Spiegel via VERMELHO
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves/UOL

Um comentário:

Armando Rocha disse...

É de lamentar que ainda nos dias de hoje exista escravatura infantil! Principalmente apoiada por países como a Alemanha, onde empresas e bancos desse país fomentam e lucram com a escravatura infantil, esse mesmo país que recrimina os demais parceiros europeus sobre tudo e mais alguma coisa. Mas enquanto der lucro o trabalho escravo infantil perdurará.

Armando Rocha, cidadão português revoltado com a situação.