sábado, 9 de outubro de 2010

Há alguns anos, li uma notícia que me chamou muito a atenção. Cientistas ingleses provaram que o ser humano tem mais tendência a acreditar em boatos do que em fatos verdadeiros. Em outros termos, notícias fantasiosas agarram-se ao cérebro com mais insistência que episódios comprovados. Entretanto, a notícia verídica se consolida com o tempo, enquanto o boato, passado o momento inicial de grande difusão, tende a se diluir, sobretudo se confrontado diretamente.

Mas o primeiro momento de crença no boato, e sua superioridade, em termos de difusão, sobre as notícias que o contradizem, confere à mentira um grande valor político, sobretudo num regime democrático, onde a tomada de poder depende essencialmente de ondas temporárias de opinião. Um presidente da república não precisa necessariamente de apoio popular para se manter no poder. Esse apoio é imprescidível apenas durante o processo eleitoral. Na impossibilidade de arregimentar um apoio substancial para seu candidato, o grupo que aspira o poder dedica-se a demonizar o adversário. Uso o termo "demonizar" porque não basta desconstruir a imagem do candidato, urge convertê-lo numa ameaça terrível aos valores mais caros ao eleitorado.

No ano passado, escrevi um ensaio intitulado O poema de Gutenberg, cujas primeiras partes discorrem sobre a tese de Thomas Hobbes, instigante pensador inglês do século XVI, sobre o mito do Leviatã. Na época de Hobbes, os Estados nacionais se caracterizavam pelo totalitarismo. A história da humanidade, aliás, com exceção de breve período na Grécia Antiga, sempre foi marcada pela concentração de poder, que criava e desmantelava impérios ao sabor da imponderável fortuna.

Segundo a maioria dos intérpretes de Hobbes, o Leviatã era um arquétipo que simbolizava o Estado, com seus tentáculos pervadindo toda a sociedade.

Minha tese era a de que, com a consolidação da democracia no mundo ocidental, a imagem criada por Hobbes não simbolizaria mais o Estado... O monstro não se sentia mais à vontade nos salões de governo.

Oswald Spengler, em seu polêmico O declínio do Ocidente, que já teve seus momentos de brilho (sobretudo entre literatos, porque é um livro muito bem escrito) mas que hoje não é popular na Academia, aborda o aparecimento da imprensa de uma forma pessimista, negativa. Não concordo com ele, pois é claro que todo avanço tecnológico traz benefícios, de um lado, e riscos, de outro. A abordagem de Spengler sobre os riscos, porém, é válida. Segundo ele, a imprensa surgiu para facilitar a manipulação das consciências pelo poder. Antes dela, os reis tinham que apelar aos fuzilamentos para convencer os trabalhadores a se engajarem em suas guerras. Com o advento da imprensa, criava-se facilmente ondas de opinião em favor das guerras, levando os cidadãos a se encaminharem, alegres e submissos, a seu próprio matadouro.

Houve isso, de fato. As grandes guerras mundiais, que quase suicidaram a civilização ocidental, sempre foram precedidas por longas e bem feitas campanhas midiáticas, a maioria delas meticulosa e astuciosamente planejada por lideranças políticas.

As campanhas perduram até hoje. Acompanhei estarrecido o "progressista" New York Times abraçar a campanha pró-guerra que antecedeu a invasão do Iraque em 2003. Até hoje suspeito que, não fosse o intenso trabalho midiático daqueles meses, escondendo e diminuindo as gigantescas manifestações mundiais contra a guerra, e publicando sofismas espertos pró-guerra e denúncias absolutamente mentirosas sobre o Iraque, o governo americano não teria condições políticas de levar adiante aquela insanidade. Não deveria, contudo, me surpreender, visto que o New York Times apóia as guerras do governo americano desde sua fundação. Vinte anos depois o jornal pede desculpas, mas não deixa de apoiar a próxima aventura.

As instituições cristãs também não tem um saldo positivo no Ocidente. Foi omissa durante o nazismo, apoiou o fascismo, ajudou a dar condições para o golpe de Estado no Brasil em 1964 e depois omitiu-se. Sempre existiram padres de esquerda, revolucionários, mas as cúpulas católicas, com raras e honrosas exceções, sempre se posicionaram ao lados dos interesses mais retrógrados da sociedade brasileira.

Voltando ao Leviatã, a minha tese é que o monstro abandonou o governo, onde não suportou o ambiente democrático, e instalou-se nas salas de redação, onde encontrou condições para se fortalecer e se desenvolver. A partir da mídia, o gigante pode controlar toda a sociedade. Derruba governos, elege outros, cria ondas de opinião pública, influencia os tribunais superiores, controla a cultura.

O advento da internet assustou o Leviatã midiático, porque projetou holofotes sobre os milhares de guerreiros liliputianos que há tempos atuavam nos subterrâneos. Hoje eu vejo, porém, que o monstro, se antes encarava esses rebeldes com a condescendência que só o poder absoluto confere, hoje entendeu que eles representam um perigo real à sua hegemonia e iniciou estratégias para combatê-los, sobretudo através da criação de seu próprio exército de mercenários da web. Os grandes portais da mídia hoje abrigam uma quantidade inacreditável de blogueiros. Todos obedientes e bem comportados.

Semana passada, o colunista Paul Krugman, que escreve para alguns jornais norte-americanos, publicou um texto em que menciona a fala de um político do Partido Republicano, no qual este diz que não é a Fox que trabalha para seu partido, e sim os republicanos é que trabalham para a Fox. Ele se referia ao fato de muitos políticos republicanos, quando sem mandato eletivo ou cargo no governo, serem contratados como empregados pelas empresas do grupo controlado por Rupert Murdoch (dono da Fox).

Nessas eleições, portanto, está em jogo não apenas uma disputa simples entre PT e PSDB e sim, sobretudo, uma guerra de proporções épicas entre o Leviatã midiático e o exército independente de guerreiros liliputianos. E não me refiro apenas aos blogueiros e que comentam em blogs e sites, mas às consciências livres, que tem coragem de pensar com suas próprias cabeças em vez de reproduzirem acriticamente a opinião lida num jornal ou revista. Obama ganhou as eleições porque Leviatã permitiu: a maioria dos grandes jornais, entre eles o New York Times, o apoiou. Dilma, ao contrário, tem oposição da quase totalidade da mídia brasileira, apesar do apoio majoritário que ela tem recebido do povo brasileiro, que por pouco não lhe dá uma massacrante vitória no primeiro turno. Estamos testemunhando algo realmente grandioso. Não é um momento fácil. A guerra só é bela vista de longe, muito de longe, e este momento será futuramente registrado em livros e filmes. Eu mesmo pretendo, se as musas me permitirem, escrever alguns. Queria, portanto, encerrar esse texto vos lembrando que os grandes momentos necessariamente requerem sacrifício e luta. Isso vale para a política, para a arte e para a vida. E enquanto formos vivos, seremos constantemente chamados para os campos de batalha, que nos dias de hoje, foram transplantados para o mundo virtual. Afinal, como disse Platão: o fim da guerra, só os mortos conhecem.

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