sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A ameaça ao caráter laico do Estado brasileiro

Se somos um Estado democrático, cabe a nós fomentar a liberdade religiosa, inclusive no que se refere ao direito de crer ou não crer em algum deus
Por Ivan Valente
No dia 13 de novembro de 2008, em audiência entre o Presidente Lula e o Papa Bento 16, a República Federativa do Brasil e o Vaticano assinaram um acordo relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica em nosso país, com o objetivo de consolidar, em um único instrumento, os diversos aspectos envolvidos na relação entre o Estado brasileiro e a Santa Sé. O acordo, no entanto, dispõe sobre uma série de direitos fundamentais, como a liberdade de crença e culto, e fere, em diversos aspectos, o princípio da laicidade do Estado brasileiro. Na prática, se for aprovado pelo Poder Legislativo, o acordo representará um verdadeiro retrocesso nas relações entre Estado e religião nos limites fixados pela nossa Constituição Federal, trazendo de volta ao debate uma questão superada há mais de cem anos em nosso país. Afinal, independentemente de seu formato, não há dúvidas da natureza religiosa do acordo.
O Brasil é um país cujo povo possui diversas crenças religiosas. Se somos um Estado democrático, cabe a nós fomentar a liberdade religiosa, inclusive no que se refere ao direito de crer ou não crer em algum deus. Assim, ainda que respeitando as convicções e opções religiosas de todos os que defendiam a proposta, é preciso afirmar que a principal forma de garantir a liberdade de exercício religioso é garantindo que o Estado nacional mantenha seu caráter laico. Senão, vejamos alguns pontos do acordo, que foi apresentado e aprovado na Câmara dos Deputados via o Projeto de Decreto Legislativo 1736/2009.
Um de seus aspectos mais polêmicos diz respeito ao ensino religioso nas escolas. O artigo 11 do PDL prevê o ensino da religião católica e de outras confissões, retomando uma concepção incompatível com o atual ordenamento jurídico ao prever um modelo puramente confessional de ensino. Nossa Constituição Federal, assim como a Lei de Diretrizes e Bases, afirma que a educação é direito de todos e dever do Estado, da família e da sociedade, e entende a escola pública como um espaço fundamental de promoção da igualdade e do respeito à diversidade. Uma educação baseada no modelo confessional de ensino está longe de ter seu caráter democrático e inclusivo preservado. A formação religiosa é parte do direito à liberdade de crença e culto e, por isso, há décadas, a educação laica é debatida pela sociedade brasileira. Até agora, parece que encontramos um modelo interessante, que define a escola pública como laica e dá abertura para escolas privadas confessionais. Se aprovado o acordo, voltarão as disputas religiosas na rede pública, sob prejuízo incalculável para a formação de nossa sociedade.
Já o artigo 14 determina que “às pessoas jurídicas eclesiásticas e religiosas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados com as finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição Federal". A Constituição, no entanto, prevê imunidade tributária apenas aos templos religiosos. Nos últimos anos, a definição de “templo” tem sido alargada, ultrapassando em muito as atividades inerentes ao exercício da religião.
Outro ponto do PL que acaba por conceder privilégios, muitos inconstitucionais, às organizações religiosas em relação às demais em funcionamento no país, é o que prevê que espaços públicos para fins religiosos podem estar previstos nos instrumentos de planejamento urbano do Plano Diretor dos municípios. A Constituição brasileira veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Como determinar quais religiões terão ou não áreas reservadas nos planos diretores?
Ou seja, são diversos os pontos do acordo que impactam a sociedade brasileira como um todo e que, por isso, deveriam ter sido debatidos de forma muito mais ampla com a população em geral. Pelo contrário, o PDL 1736 foi aprovado num verdadeiro acórdão na Câmara dos Deputados, que incluiu a aprovação, por tabela, do PL 5598/2009 – conhecido como Lei Geral das Religiões, praticamente uma cópia do PDL 1736, editado às pressas para compensar a bancada evangélica. Ao contrário do que afirmou o deputado Inocêncio de Oliveira, que presidiu a sessão da Câmara que aprovou os projetos, havia um acordo firmado entre todos os líderes partidários. O PSOL, no entanto, não foi consultado. Na verdade, o que se constatou durante a sessão foi que aqueles muitos deputados que tinham divergências em relação à aprovação do acordo Brasil - Vaticano rapidamente mudaram de opinião quando outros credos foram contemplados em projeto de lei semelhante. Ou seja, não se tratava de preservar o caráter laico do Estado brasileiro, mas de aprovar uma lei de compensações no mercado da fé.
Por isso, cabe a contestação na Justiça sobre a tramitação e a votação anti-regimental dos projetos e a solicitação da anulação da votação. A Associação dos Magistrados Brasileiros também já declarou que pode impetrar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal se os projetos forem aprovados no Senado. Toda ação neste sentido é fundamental, sob o risco de legitimarmos uma lei que vai restringir direitos tão duramente conquistados pela sociedade brasileira.
Ivan Valente é deputado federal pelo PSOL - SP

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