A formação política dentro de um processo de transformação nacional
Após reeleição de Evo, Bolívia enfrenta os desafios de formar a população para dar sequência ao processo de mudanças
correspondente em La Paz (Bolívia)
A larga legitimidade dada pelos bolivianos ao governo do MAS-IPSP nas eleições presidenciais do dia 6 de dezembro de 2009 foi a confirmação formal da hegemonia do movimento liderado por Evo Morales no país, selando o fi m da dura polarização imposta pela direita nos últimos quatro anos. A partir deste ano, entra em questão a capacidade desse processo político consolidar o seu projeto de país. Diante de tamanha tarefa, que trabalho de formação política está sendo feito?
A lista de desafios para os que postulam a descolonização do Estado, uma revolução democrática e cultural e que tem como obrigação implementar uma nova Constituição – que passa a definir o Estado como plurinacional e prevê a coexistência das economias estatal, privada e comunitária –, não é pequena. Uma mostra da dimensão pode ser ilustrada pelas indagações feitas pelo diretor-geral de gestão pública do Ministério de Economia e Finanças e integrante do grupo de intelectuais Comuna, Raul Prada: “Herdamos da colônia o Estado, que se modernizou, mas segue sendo o grande colonizador. Porém, o que nos diz a Constituição é fundar uma segunda República. Como vamos assumir a transição para que ela seja transformadora, e não restauradora? O que estamos entendendo por nações? Como vamos sair do multiculturalismo liberal? Temos previsto um modelo social comunitário, mas como fazê-lo dentro do contexto da economia mundial capitalista e com um programa de governo que é desenvolvimentista, uma restauração nostálgica dos projetos dos anos de 1950 de industrialização?”
Para Prada, o desafio histórico para o atual processo boliviano está em combinar a mudança de elite política com a mudança de modelo de Estado, capaz ainda de fugir do pragmatismo político que, ao longo da história, já sequestrou governos revolucionários de esquerda, diminuindo seus alcances transformadores. Nesse sentido, o intelectual classifica como preocupante o atual quadro, que combina “excessiva centralidade dada ao Poder Executivo” e uma falta de “análise da experiência, de compreensão teórica do processo para conduzi-lo e direcioná-lo”.
Heterogeneidade
O analista político Hugo Moldiz considera que no gabinete de Morales está concentrada parte “do que de melhor existe nesse país”, porém atribui a falta de clareza política sinalizada por Prada à heterogeneidade dessa composição. “Aí estão desde democratas radicais até dirigentes com influência marxista, passando por uma gama de concepções indianistas, que talvez possamos classificar em duas: uma identificada com a cosmovisão andina-amazônica e outra mais comunitarista. Os elementos que marcam o encontro de todos são o anti-imperialismo e o nacionalismo popular-indígena. Mas existem graus de anti-imperialismo. Desde aqueles que creem que lutar contra o imperialismo é lutar contra o capitalismo até aqueles que desejam só maior autonomia frente à ingerência dos EUA.”
Segundo Moldiz, uma das facetas positivas do cenário aberto pelas eleições de 6 de dezembro está justamente na possibilidade dessas contradições se abrirem para além das esferas de governo, desmembrando um rico debate no interior dos movimentos sociais e da sociedade em seu conjunto sobre o horizonte desse processo. “Porém, só com formação política resolveremos isso, o que não foi uma preocupação central até agora”, pondera.
A formação política
A debilidade na formação é assumida por Rafael Puente, responsável há três anos pela escola de formação política do partido MAS-IPSP. De acordo com ele, na base de sustentação desse processo – marcado pela alta capacidade de mobilização popular –, “há sufi ciente decisão política, há sentimento, há instinto político, tudo que se necessita para saber o que não se quer. Mas não há consciência política que permita saber e desenhar o que, sim, se quer, ou seja, para traçar uma estratégia de poder”.
Para Puente, esse deficit na formação política é o reflexo cultural deixado pelo histórico Estado patrimonial boliviano, no qual prevalecia a visão de que “entrar no aparato estatal não é para mudá-lo, mas para cobrar a sua parte da herança”. Porém, o masista também responsabiliza dirigentes do partido que, ao serem eleitos, “já não sentem a necessidade de se formar” e que se aproximam da escola “só para fazer discursos de inauguração”.
Na opinião de Moldiz, as dificuldades de institucionalização da formação no MAS são resultado, em boa medida, do fato de o partido ter origem na “forma movimento”, na qual a preparação política tem menos tradição se comparada à “forma partido”.
Segundo Puente, há um sentimento crescente de que a formação deve ser uma prioridade, mas não há uma política clara para ela, tampouco um orçamento específico. A escola do MAS é itinerante e não possui estrutura física própria. Ela tem uma lista de 90 professores, todos voluntários, dos quais cerca de 30 já foram aproveitados. Em dois anos e meio, foram realizados nove cursos que duravam dois dias inteiros, com turmas de aproximadamente 35 jovens cada. Todos os cursos foram realizados nas áreas urbanas de La Paz, Santa Cruz, Cochabamba, Sucre e Tarija. “Eles estudam temas relativos à realidade nacional, à economia, à história do país, à nova Constituição, ao sistema de partidos, de acordo com um desenho curricular não muito sistemático”, explica Puente. Neste mês, as turmas entram em sua segunda etapa.
Qual educação?
A formação de líderes – “uma invenção gringa que nos fez muito dano” – e de gestores públicos não deve ser o foco de uma política de formação, segundo o diretor da escola do MAS. O perfi l do militante que deve ser formado. Segundo Puente, são “pessoas críticas, solidárias e conhecedoras de sua realidade, e daí sairão os líderes que as bases considerem como tal”.
Moldiz e Prada são mais rigorosos e cobram uma escola na qual se saiba “onde começa e onde termina a formação de verdadeiros quadros”, ao estilo “bolchevique”. “Há que se resgatar as mais fortes experiências da velha esquerda, não todo seu currículo, mas no sentido de ter formação de militância com condições de estudo sistemático”, explica Prada. Moldiz dá outro exemplo nessa direção: “Se há companheiros que são identificados como potenciais quadros na administração pública, que, mais que burocratas, são percebidos como quadros políticos, talvez a decisão responsável com o futuro é dar licença a esses quadros por alguns meses, um ano, para focarem em cursos de formação política intensiva e depois retornem”.
Além de quadros altamente preparados, o analista político aponta que deve haver um segundo braço da política de formação, com iniciativas de massa, ofi cinas, seminários, por exemplo, para uma maior democratização das diversas vertentes existentes na base de sustentação do governo: marxismo e suas correntes, o indianismo comunitário, o andino etc.
Nova intelectualidade
Diante da hegemonia eleitoral conquistada, Moldiz ressalta que um novo sistema hegemônico de fato só será alcançado com mudanças profundas na educação formal, não-formal e em novos aparatos ideológicos. “Assim reescreveremos nossa história, mas para isso necessitamos de uma nova intelectualidade. O plano acadêmico e intelectual, tem que passar da atitude romântica a uma atitude muito mais ativa. Escrever sobre o processo, mas desde suas luzes e de suas sombras, ou seja, pensamento crítico. Já temos uma intelectualidade emergente, indígena, camponesa, popular e também dos setores médios, mas são pouco visibilizados. Mesmo os meios estatais seguem entrevistando os de sempre”, critica.
Prada assinala que a criação de vanguardas intelectuais, emergentes das propostas dos movimentos sociais e vinculadas a eles, deve estar na dimensão histórica do processo boliviano porque é preciso preencher o vazio deixado pelas vanguardas de esquerda que entraram em crise com a queda do Muro de Berlim.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/internacional/a-formacao-politica-dentro-de-um-processo-de-transformacao-nacional/view
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