quarta-feira, 30 de março de 2011

Líbia: Gaddafi mata e o imperialismo mata mais

A situação na Líbia é muito complexa, isso é evidente. Mas faz falta uma análise sem reações instintivas, em um ou outro sentido, de alguns setores dos movimentos sociais e da esquerda do Ocidente. Com este texto não se pretende oferecer uma resposta completa e final, mas apresentar elementos que nos ajudem a decidir como nos posicionar. Mais importante que isso, como agir na atual situação.

David Karvala

Não à intervenção

Se podemos dizer alguma coisa em relação à Líbia neste momento deve ser "não à intervenção!".



A zona de exclusão aérea jamais consistiria na simples e inocente proteção dos rebeldes. Claro que a medida implicaria ataques aéreos dirigidos inicialmente contra as instalações militares de Gaddafi. Mas, como disse Joan Roure, diretor de notícias internacionais da TV3 (emissora de TV catalã), em um debate da Aturem la Guerra (entidade do movimento antiguerra na Catalunha), os bombardeios aéreos nunca são "cirúrgicos", sempre há "danos colaterais". Ou seja, ao atacarem as instalações antiaéreas de Gaddafi em Trípoli, matam civis, talvez dos mesmos bairros operários que se manifestaram reiteradamente contra Gaddafi desde o início da Revolução Líbia.

A hipocrisia da intervenção é assombrosa. Quando Israel fazia seus massacres no Líbano e em Gaza, nenhuma potência ocidental sequer exigiu que o Estado sionista parasse, nem muito menos pensou em obrigá-lo a fazê-lo com mísseis e bombas. Entre os que atacam agora a Líbia, estão os protagonistas das ocupações do Afeganistão e do Iraque que provocaram as mortes de centenas de milhares.



O mais flagrante é que no mesmo momento em que a "coalizão internacional" faz uma intervenção sob o pretexto de defender os opositores líbios, a Arábia Saudita – que apóia e colabora nesta coalizão – envia mil soldados ao Bahrein para se somar aos ataques assassinos contra os opositores nesse país. Os protestos massivos no Iêmen já causaram dezenas ou talvez centenas de mortes pelas mãos das forças de segurança do ditador Saleh, firme aliado do Ocidente. Aqui também não haverá intervenção para acabar com a violência do ditador.

Se os países ocidentais quisessem realmente ajudar os povos do mundo árabe na sua luta pela democracia, sairiam imediatamente do Afeganistão e do Iraque, deixariam de apoiar todas as ditaduras da região (rompendo relações políticas, econômicas e militares com elas), deixariam de apoiar os crimes de guerra de Israel e obrigariam-no, no mínimo, a cumprir as resoluções da ONU. Como não fazem nada disso, é evidente que não lhes interessa em nada defender a democracia, a justiça, nem nada do gênero.

Os motivos da intervenção

A explicação mais simples e evidente da intervenção é o petróleo. No entanto, há que se entender que não é o único motivo do ataque.


Um motivo que não convence é o de que Gaddafi seja um "inimigo do imperialismo". Voltaremos mais adiante a esse argumento.

O inimigo real do imperialismo é a onda de revoluções que se estende pela região. Já caíram Ben Ali na Tunísia e, muito mais grave por sua relevância em relação à Palestina, Mubarak no Egito. Outros ditadores aliados enfrentam movimentos maiores ou menores, como também é o caso de Asad na Síria, que é inimigo ou aliado do Ocidente, segundo o momento. As revoluções pegaram de surpresa todos os governantes do mundo. Todos seus serviços de espionagem não serviram para nada.


Se conseguem criar na Líbia um governo estável pró-ocidental, isso poderia ajudar a frear o processo revolucionário. Por um lado, fortaleceria a idéia de "mudar tudo para que nada mude" que é a maior esperança dos Estados Unidos para salvar os dedos, agora que as revoluções em curso ameaçam arrancar-lhes os anéis. Por outro lado, pressuporia ter um aliado estrategicamente localizado entre o Egito e a Tunísia, os dois países nos quais o processo revolucionário teve mais avanços até o momento. Dessa maneira, os Estados Unidos e seus aliados teriam mais capacidade de "dissuadir" possíveis mudanças mais radicais nesses países (evidentemente, este argumento apenas é valido se existe um reconhecimento de que há revoluções em curso no Egito e na Tunísia, também voltaremos depois a isso).

Para os Estados Unidos, cujas desastrosas ocupações do Afeganistão e do Iraque enfraqueceram muito a influência do país na região, o fato de se apresentar como defensor dos líbios poderia ajudá-lo a recuperar posições e servir de justificativa para suas ações militares.

Por fim, um aspecto interessante do ataque é a maneira como a França se reafirma como potência militar, após sua aproximação verbal (na qual até alguns intelectuais do Fórum Social Mundial acreditaram) com o pacifismo em 2003. Aqui há um complicado jogo de diversos lados e ângulos de alianças e rivalidades entre as diferentes potências imperialistas: Estados Unidos, diferentes países da União Européia, China, Rússia... Temos que estar atentos.

Gaddafi não é dos nossos

A esta altura, surpreende ter que insistir nisso, mas vale a pena tecer brevemente alguns comentários.

A chegada ao poder na Líbia em 1969 por parte de um grupo de militares, inspirados no feito dos militares egípcios em 1952, foi uma ação a partir de cima, sem contar com a mobilização social como fator determinante. Como em tantas lutas anticoloniais, houve melhorias sociais, mas se passou rapidamente da libertação a um regime autoritário. Nos anos 70, Gaddafi já era um ditador, mas com retórica radical suficiente para enganar certos setores da esquerda e assustar os governos do Ocidente.

Nos anos 90, entretanto, após a queda da União Soviética, os governos ocidentais e Gaddafi começaram a se entender. Aos primeiros lhes interessava o petróleo, enquanto que o último buscava apoio frente ao crescimento na região de grupos islâmicos do tipo da Al-Qaeda. Após o 11 de setembro, Gaddafi foi recebido como o filho pródigo, cortejado por Itália, França, Grã-Bretanha... Esses três países forneceram a Gaddafi dois terços das armas que ele agora utiliza contra a oposição. Gaddafi, por sua vez, assumiu de forma cada vez mais explícita o papel de fiel aliado do Ocidente, apresentando-se como o bastião contra o islamismo radical e a imigração africana.

Inclusive durante o conflito atual, Gaddafi tentou se defender dizendo que financiou a campanha eleitoral de Sarkozy e buscando o apoio de Israel.


A retórica radical que Gaddafi retomou nos últimos dias não deve enganar a ninguém. Ele não é um anti-imperialista, mas sim um servo do imperialismo que caiu em desgraça, como foi Saddam Hussein. Quem tenta argumentar o contrário apenas dificulta a mobilização contra o ataque militar ocidental, e fomenta a confusão sobre o que se supõe ser contra o imperialismo.

A Revolução Líbia é tão real como as outras

Alguns dos defensores de Gaddafi tentam apresentar as lutas na Líbia como algo totalmente diferente das revoluções em curso em outros países da região. Argumenta-se que os protestos na Líbia são "tribais" ou obra de agentes da CIA. Percebe-se a contradição ao elogiar os "avanços sociais" promovidos por Gaddafi para depois afirmar que a sociedade líbia é bastante atrasada para conduzir uma luta política que não seja tribal ou dependente de um poder estrangeiro.


Na verdade, todas as revoluções do mundo árabe têm coisas em comum e elementos muito específicos. No Iêmen, a divisão do país durante a Guerra Fria (com um norte pró-ocidental e um sul aliado de Moscou) ainda pesa muito. Desde a unificação do país em 1990, quem manda é Saleh, o antigo governante do norte, o que contribui para as lutas no sul. Por outro lado, um fator importante no norte são as tribos xiitas. No Bahrein, a divisão religiosa também é crucial: o rei é sunita, apoiado pela Arábia Saudita, e a maioria da população – e, portanto, dos manifestantes – é xiita... movimento que alguns consideram ser uma força secretamente apoiada pelo Irã, também majoritariamente xiita.

Portanto, a lógica que diz que não há revolução na Líbia devido a tal fator específico leva ao descarte de todas as revoluções na região. Para citar um exemplo: um tal Manuel Freytas escreveu que "o objetivo da "democratização" (que começa pela Tunísia e pelo Egito) é... instalar governos autoritários legitimados nas urnas... Em termos estratégicos, a troca do regime "militarista" de Mubarak por um governo "democrático" eleito nas urnas significa a combinação do "poder duro" (Pentágono) com o "poder brando" (Departamento de Estado dos EUA) dentro de um dispositivo convergente de controle pela "esquerda" e pela "direita"." Ou seja, tudo é uma manobra de cima para baixo da CIA e do Pentágono...

Lênin explicou em 1916 que em todas as revoluções autênticas há diversos fatores (lutas da pequena burguesia por questões nacionais, religiosas etc.) e que "quem espera uma revolução social pura, não a verá jamais. Será um revolucionário de palavra que não compreende a verdadeira revolução."

A fraqueza corrompe

O revolucionário palestino de origem judaica Tony Cliff dizia que "o poder corrompe, mas a falta de poder corrompe totalmente." A debilidade dos líderes opositores diante dos ataques de Gaddafi levou-os a se corromperem, buscando o apoio do Ocidente.


Não é a primeira vez que ocorre algo assim. No Iraque, os principais partidos do Curdistão iraquiano, que tinham trajetória de luta anti-imperialista, passaram a ser aliados dos Estados Unidos em 1991. Os dirigentes desses partidos foram totalmente corrompidos, mas esse não é um motivo para deixar de defender os direitos nacionais do povo curdo.


Os dirigentes da oposição que buscam a intervenção ocidental não foram tão longe como os curdos, mas cometem um grave equívoco. Pensam que podem compactuar com o diabo pela metade, exigindo uma zona de exclusão aérea, mas se opondo a qualquer presença de tropas estrangeiras. Na verdade, a mesma lógica que justifica ataques com aviões estrangeiros também poderia justificar exércitos estrangeiros e uma ocupação por completo.

Por mais desesperada que fosse a situação da revolução sob os bombardeios de Gaddafi, a intervenção estrangeira vai enfraquecê-la ainda mais. Não se pode fazer uma revolução sob a proteção militar dos Estados Unidos e Cia. Uma revolução não é uma questão principalmente militar, mas sim social. O ponto débil da Revolução Líbia foi Trípoli, onde Gaddafi manteve a hegemonia, apesar de protestos em muitos bairros operários. Os bombardeios ocidentais na cidade não vão melhorar o balanço político a favor da revolução, mas sim fortalecerão o ditador.

Qual é a alternativa? Alguns falam de impor sanções ao regime de Gaddafi, deixando de comprar petróleo dele ou vender-lhe armas, por exemplo. Parece fazer sentido, mas se por sua vez continuam vendendo armas e fazendo comércio com Israel, Arábia Saudita etc. reproduz-se de forma evidente as duas caras com o ataque militar. E é óbvio que a vontade dos países ocidentais em tomar medidas contra Gaddafi não se estende aos demais governos ocidentais e/ou assassinos. Tampouco devemos esquecer os terríveis efeitos sobre a população iraquiana das sanções que sofreu seu país nos anos 90. É "realista" exigir sanções contra Gaddafi, porque os poderosos podem apoiá-las. Mas não é nos demais casos, porque eles não vão querer aplicá-las.

A verdade é que nós, da esquerda e dos movimentos sociais no mundo inteiro, não temos uma maneira fácil de resolver o problema, como não a temos para o conflito palestino, nem muito menos para o fato de que 20 mil crianças no mundo todo morrem todo dia por doenças e fome. Se a própria revolução tivesse conseguido derrubar Gaddafi, seria um passo positivo na transformação global que precisamos. Mas o fortalecimento do imperialismo através de sua intervenção na Líbia – com as justificativas e desculpas humanitárias que forem – fortalecerá o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e os demais organismos que provocam essas 20 mil mortes diárias de crianças. Quem são os que não se preocupam pela perda de vidas humanas?

Existe uma estranha simetria entre os setores da esquerda que apóiam Gaddafi e os que respaldam a intervenção ocidental. Em meio à maior revolução na história do mundo árabe. Os primeiros agarram-se a um déspota louco como alternativa ao imperialismo. Os outros esperam que as armas do Ocidente defendam uma revolução. Não são apenas os dirigentes de Benghazi os que deixaram que sua fraqueza os corrompa.

Uma solução: revolução

Isso já não é um lema abstrato. A alternativa à intervenção ocidental é a revolução na região… e esperemos com o tempo que vá mais além. É essencial entender que a Revolução Tunisiana não terminou em janeiro e que a Revolução Egípcia não acabou com a queda de Mubarak em 11 de fevereiro. Foi só o começo. Se conseguem derrubar ditadores em outros países (Iêmen, Bahrein e Síria) também será apenas um passo de um longo processo. Quem argumenta que as revoluções mudaram muito pouco perdem de vista que a polarização continua dentro delas. No Egito, por exemplo, a organização e as lutas dos operários estão crescendo, colocando as demandas econômicas que surgiram a partir de 25 de janeiro ao lado de exigências democráticas. Na Tunísia, quando a maioria dos correspondentes internacionais já havia ido embora, houve novos protestos e mais um governo caiu.

Uma nova vitória importante de qualquer uma dessas revoluções poderia dar novas perspectivas à revolução na Líbia em vários sentidos.

Antes de tudo, voltaria a colocar a revolução e a luta social em primeiro plano, afastando do cenário da "democratização" as forças ocidentais.


Através de bombardeios, Gaddafi pode impor um controle mais duro que nunca, em nome da defesa da pátria. Se não há alternativa, muita gente aceitará. Um novo impulso à revolução poderia lembrar a quem rechaça a ditadura que as opções não se limitam a Gaddafi ou Ocidente.


Tampouco existem motivos para pensar que o leste da Líbia, que aparentemente continuará por enquanto nas mãos do Conselho Nacional de Transição, liderado por ex-colaboradores de Gaddafi, não possa experimentar debates e mudanças políticas. Enquanto a revolução avançava, havia conflitos entre o Conselho Nacional de Transição e os comitês de cidades e bairros nas zonas libertadas. Era difícil saber com exatidão o que acontecia, mas a impressão era que o Conselho Nacional de Transição era mais partidário da aliança com o Ocidente do que os comitês locais, tanto é que ativistas de base detiveram agentes das forças especiais britânicas que tentavam fazer uma operação secreta no leste da Líbia.
Talvez, debaixo de bombardeios de Gaddafi, até esses grupos locais se deixaram convencer pela proposta de intervenção estrangeira, mas com o tempo – vendo a atuação do Ocidente de um lado e das revoluções árabes de outro – as diferenças podem voltar a surgir neste e em outros temas

A melhor esperança para derrubar o regime de Gaddafi não são as bombas estrangeiras, mas sim um movimento que construa uma alternativa social e política capaz de atrair os trabalhadores e oficiais de baixa patente do exército de ambas as partes do país, atualmente dividido. Esta alternativa não virá do conselho de transição de ex-ministros de Gaddafi, menos ainda do próprio Gaddafi.

E nós?

Como diante dos ataques contra o Afeganistão em 2001 e o Iraque em 2003, temos que insistir em "não à guerra", não à intervenção ocidental. Mas a situação é mais difícil e complexa do que nunca.

Muitos que resistiram às tentações da intervenção humanitária naqueles casos cederam dessa vez. Iniciativa per Catalunya (partido político catalão que se reivindica ecossocialista) votou a favor de uma zona de exclusão aérea e até um intelectual marxista normalmente lúcido como Gilbert Achcar se deixou levar. Segundo ele: "de uma perspectiva anti-imperialista, não se pode e não se deve fazer oposição à zona de restrição aérea, dado que não há alternativa plausível de proteção à população em risco."

Não seria sensato nos centrarmos em denunciar as pessoas que tomam essa atitude como agentes do imperialismo. Mais produtivo será o debate paciente, junto a um acompanhamento cuidadoso dos acontecimentos. Inevitavelmente, cedo ou tarde, vão se dar conta do seu erro.

Um movimento contra a intervenção não tem por que excluir a esquerda pró-Gaddafi, mas seria um suicídio político permitir que sua visão, extremamente minoritária, fosse o discurso do movimento.

O principal desafio nas próximas semanas, talvez meses, sobre a Líbia será derrubar o mito da intervenção humanitária. Conseguimos derrubá-lo em relação ao Iraque. Foi enfraquecido no Afeganistão. Agora, tentam recuperá-lo na Líbia. Será necessário fazer um debate paciente para evitar que consigam.

Antes de mais nada, há que se romper é com a idéia de que a política se limita a escolher qual país ou qual liderança seguir. Antes era: Estados Unidos ou União Soviética? Agora é: Sarkozy ou Gaddafi? Obama ou Ahmadinejad? Zapatero ou Rajoy?

As revoluções na Tunísia, e acima de tudo, no Egito nos demonstram que a política de verdade consiste nas pessoas colaborando, lutando juntas para mudar suas vidas e, assim, mudar o mundo.

Em relação à intervenção na Líbia, mais do que discutir as disposições militares, devemos nos colocar uma questão muito mais simples: confiamos ou não em nossos governantes?

Se confiamos neles para solucionar os problemas internacionais, por que não confiamos neles também para resolver a crise? Se aceitamos os bombardeios na Líbia como uma tentativa séria de conseguir a paz e a democracia, por que não aceitar os presentes milionários aos bancos e os cortes sociais como uma tentativa de conseguir a justiça social?

Por outro lado, se sabemos que são uns mentirosos corruptos, incapazes de fazer algo de bom para o povo de seu próprio país, por que devemos pensar que vão fazer algo de bom para o povo líbio?

Não, devemos nos inspirar com toda a força no espírito da Praça Tahrir.

Não à intervenção! Sim às revoluções árabes!

FONTE: REVOLUTAS
SITE: http://www.revolutas.net
PUBLICAÇÃO: 27/03/2011

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